FELIZ DIA DOS NAMORADOS, PATRÃOZINHO >> Zoraya Cesar

Dizer que o dia estava lindo seria um chavão inescusável. Mas no amor tudo é escusável. Até as cartas de amor, que são ridículas, ou não seriam cartas de amor. Suriellen não tinha a mínima ideia de quem dissera isso, nem saberia dizer quem era Fernando Pessoa. Tivessem se encontrado, talvez fossem bons amigos de alma, pois de amor, Amor, Suriellen entendia. 

Deixemos, portanto, de implicâncias com chavões e retomemos nossa história de amor.

O dia estava lindo. Um vento cantante e gaiato trazia um frescor outonal e levantava a saia das folhas para vê-las rodopiar. O azul lavado e o amarelo suave do céu acolhiam-se, como um quadro de Turner. Suriellen estava feliz. Era dia dos namorados. E era sexta-feira. 

Era o dia da faxina na casa do Seu Roberto.  

Quando o conheceu, há quase 20 anos, ela mal chegara à maioridade, mas ele já era quarentão. Quando a mulher de Seu Roberto foi embora, levou as crianças e o cachorro; só não levou a empregada porque Suriellen escolheu ficar a serviço do patrão. Do “Patrãozinho”, como ela o chamara desde o primeiro dia. 

Um bom patrão, o Seu Roberto. Humano, generoso, tranquilo. Calado. Excêntrico. Suriellen o amava como à própria vida. Até porque a vida com ele, às sextas-feiras, era muito melhor que a sua, de todo dia. 
O outono dava ao dia uma coloração
que lembrava um quadro de
William Turner.
Suriellen não sabia disso.
Mas não precisava saber.
Estava feliz. 

Não eram amantes, nunca foram, sequer sonharam com isso. Suriellen o amava do seu jeito. Sem desejos carnais. Sem pretensões românticas. Ela, a empregada. Ele, o patrão. Quando a mulher dele saiu, Suriellen tomou as vezes de dona de casa. Não de dona ‘da’ casa, que ela jamais teve essa veleidade. Não queria casar com Seu Roberto. Bastava-lhe fazer parte da sua existência. 

Na convivência semanal ao longo dos anos, alguns tratos foram firmados. Ela tinha a chave e total liberdade. Ele nunca a recebia ou a levava até a porta. Não se faz isso com quem é ‘de casa’, dizia. Ela não o aborrecia com agradecimentos nem escondia quando precisava de alguma ajuda. 

Se Seu Roberto era caladão, Suriellen não gostava de bate papo besta. Conversavam apenas durante o almoço e só se encontravam de novo na hora de ela ir embora. Afora esses momentos de intimidade – que eram suficientes para se entenderem como poucas pessoas se entenderiam – só conversavam o essencial.

Para Suriellen, estava perfeito. Esse tipo de relação protegia seus sentimentos desesperançados contra qualquer suspeita. Podia amá-lo à vontade, o quanto quisesse, cuidar dele, e, ao menos às sextas-feiras, aproveitar um pouco da vida que ele, sem saber, lhe oferecia. 

Uma vida de música clássica, que ele ouvia o dia inteiro, cada música linda que só! Uma vida de paz, numa casa em que ninguém gritava com ela, sem risadas altas e gente barulhenta, em que a televisão nunca era ligada, muito menos aos brados. Uma vida em que o dono da casa a tratava com respeito, consideração e, de certa forma, amor. 

Pois como não chamar de amor Seu Roberto sempre perceber quando ela estava triste? Sabendo que ela gostava de histórias, volta e meia dar-lhe um livro? Como não chamar de amor ele mandar comprar as frutas que ela apreciava? Dizem que o diabo mora nos detalhes. Deixem-me dizer-lhes: o amor também. 

O marido não era dos piores. Nem dos melhores. Rude, chegado demais a uma cerveja e churrascadas, que ela detestava. Mas era trabalhador e punha dinheiro em casa. Nunca batera nela. No máximo, uns gritos e modos inconvenientes quando bebia demais. Suriellen nascera uma mulher prática. Essa era a sua realidade. Romance não põe mesa. Juventude passa. O cansaço existencial nasce com a pessoa e gruda nela como seu próprio nome, a acompanhá-la até a morte. Suriellen não tinha ilusões. Mas, como todo mundo, precisava de um pouco de sonho. E seu sonho era o Seu Roberto. O Roberto dela. 

Nessa sexta-feira ela sentia seu coração dançar com as folhas rodopiando ao vento. Era dia dos namorados. Ela nunca dera importância a esse dia, nunca trocara presentes ou juras de amor. Nem fazia questão. Romantismo era para os ricos e tolos.  

Tantos anos trabalhando para Seu Roberto, tantos dias dos namorados, das mães, disso, daquilo, natais e anos novos viram passar, indiferentes, por que aquele seria especial? 

Ele estava, como sempre, no estúdio, de onde só sairia na hora do almoço. O dia correu normalmente, a não ser por Suriellen se sentir como num conto de fadas. Ao final da tarde, despediram-se, como usual. Antes de sair, porém, Suriellen trocou a toalha da mesa, colocou em cima as flores que trouxera de manhã e também o bolo que fizera durante a tarde. A casa toda estava mais colorida. Mais cheirosa. Mais... romântica. 

Ele era distraído, jamais ligaria os mimos ao dia dos namorados. Suriellen, porém, não precisava que ele soubesse. Importante era a sensação de felicidade que sentia naquele momento. 

Feliz dia dos namorados, Patrãozinho. Feliz dia dos namorados, meu Amor. 


Imagem

Heidelberger Schloss von William Turner 1844 1845

Page URL:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Joseph_Mallord_William_Turner_-_Norham_Castle,_Sunrise_-_WGA23182.jpg
File URL:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/33/Joseph_Mallord_William_Turner_-_Norham_Castle%2C_Sunrise_-_WGA23182.jpg
J. M. W. Turner / Public domain

Comentários

Marcio disse…
Suriellen, seja mais eloquente em suas demonstrações. Seu Roberto precisa de sinais mais seguros de que pode tomar alguma iniciativa.
Zoraya, esse texto tem segunda parte? Até agora, não morreu ninguém! Nem o marido da Suriellen, que sequer mereceu nome de batismo.
Érica disse…
Ah! Tão fofinha! Mas acabou???? Na hora que estava me empolgando com a história! Como assim?!
So romantic...
Conheço pelo menos uma Suriellen que depois herdou tudo do Seu Roberto. Às vezes a dedicação compensa...
Clarisse Pacheco disse…
Seu conto me emocionou. Dos mais bonitos que já li nessa coluna. Adorei.
Anônimo disse…
Nos pequenos detalhes que dá pra perceber as referências. A vida imita a arte ou arte imita a vida. Até nessa crônica fez me lembrar da empregada que teve o filho morto por descuido da patroa e senti um pouco de preconceito na crônica, me desculpe pela opinião se eu tiver enganado. Uma coisa que não se compra é o amor e a felicidade também senti uma pontinha de inveja da Suriellen por ser uma simples empregada, mas que transborda felicidade e amor. Feliz dia dos namorados!
branco disse…
que coisa mais linda. um clichê e logo após o desmanche do clichê. poderia ficar elogiando por muito tempo, mas "...Dizem que o diabo mora nos detalhes. Deixem-me dizer-lhes: o amor também.", já se basta.
Aí, que lindo... ai,que triste... há muitas formas de viver o amor... um dia, quem sabe essa forma tenha também o toque...
Carla Dias disse…
Adorei, Zoraya! :)

Ah, as nuances do amor. Para mim, Suriellen e Seu Roberto são os ícones do amor platônico. Tudo o que gira em torno, permanece sem ser verbalizado alimenta de delícias seus espíritos... ok, eu também fiquei esperando pela parte 2.
Márcia Bessa disse…
Muito fofo esse conto, amei!!! Adoro a riqueza de detalhes, parece que vejo toda a cena. Parabéns Zo !!!como sempre arrasando!
Claudia Dias disse…
Que coisa mais linda, de uma poesia sem igual! Adorei!
Albir disse…
Suriellen não precisa que ele saiba porque, como diz Drummond, a poesia daquele instante inunda sua vida inteira.

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