FELIZ DIA DOS NAMORADOS, PATRÃOZINHO >> Zoraya Cesar
Deixemos, portanto, de implicâncias com chavões e retomemos nossa história de amor.
O dia estava lindo. Um vento cantante e gaiato trazia um frescor outonal e levantava a saia das folhas para vê-las rodopiar. O azul lavado e o amarelo suave do céu acolhiam-se, como um quadro de Turner. Suriellen estava feliz. Era dia dos namorados. E era sexta-feira.
Era o dia da faxina na casa do Seu Roberto.
Quando o conheceu, há quase 20 anos, ela mal chegara à maioridade, mas ele já era quarentão. Quando a mulher de Seu Roberto foi embora, levou as crianças e o cachorro; só não levou a empregada porque Suriellen escolheu ficar a serviço do patrão. Do “Patrãozinho”, como ela o chamara desde o primeiro dia.
Um bom patrão, o Seu Roberto. Humano, generoso, tranquilo. Calado. Excêntrico. Suriellen o amava como à própria vida. Até porque a vida com ele, às sextas-feiras, era muito melhor que a sua, de todo dia.
O outono dava ao dia uma coloração que lembrava um quadro de William Turner. Suriellen não sabia disso. Mas não precisava saber. Estava feliz. |
Não eram amantes, nunca foram, sequer sonharam com isso. Suriellen o amava do seu jeito. Sem desejos carnais. Sem pretensões românticas. Ela, a empregada. Ele, o patrão. Quando a mulher dele saiu, Suriellen tomou as vezes de dona de casa. Não de dona ‘da’ casa, que ela jamais teve essa veleidade. Não queria casar com Seu Roberto. Bastava-lhe fazer parte da sua existência.
Na convivência semanal ao longo dos anos, alguns tratos foram firmados. Ela tinha a chave e total liberdade. Ele nunca a recebia ou a levava até a porta. Não se faz isso com quem é ‘de casa’, dizia. Ela não o aborrecia com agradecimentos nem escondia quando precisava de alguma ajuda.
Se Seu Roberto era caladão, Suriellen não gostava de bate papo besta. Conversavam apenas durante o almoço e só se encontravam de novo na hora de ela ir embora. Afora esses momentos de intimidade – que eram suficientes para se entenderem como poucas pessoas se entenderiam – só conversavam o essencial.
Para Suriellen, estava perfeito. Esse tipo de relação protegia seus sentimentos desesperançados contra qualquer suspeita. Podia amá-lo à vontade, o quanto quisesse, cuidar dele, e, ao menos às sextas-feiras, aproveitar um pouco da vida que ele, sem saber, lhe oferecia.
Uma vida de música clássica, que ele ouvia o dia inteiro, cada música linda que só! Uma vida de paz, numa casa em que ninguém gritava com ela, sem risadas altas e gente barulhenta, em que a televisão nunca era ligada, muito menos aos brados. Uma vida em que o dono da casa a tratava com respeito, consideração e, de certa forma, amor.
Pois como não chamar de amor Seu Roberto sempre perceber quando ela estava triste? Sabendo que ela gostava de histórias, volta e meia dar-lhe um livro? Como não chamar de amor ele mandar comprar as frutas que ela apreciava? Dizem que o diabo mora nos detalhes. Deixem-me dizer-lhes: o amor também.
O marido não era dos piores. Nem dos melhores. Rude, chegado demais a uma cerveja e churrascadas, que ela detestava. Mas era trabalhador e punha dinheiro em casa. Nunca batera nela. No máximo, uns gritos e modos inconvenientes quando bebia demais. Suriellen nascera uma mulher prática. Essa era a sua realidade. Romance não põe mesa. Juventude passa. O cansaço existencial nasce com a pessoa e gruda nela como seu próprio nome, a acompanhá-la até a morte. Suriellen não tinha ilusões. Mas, como todo mundo, precisava de um pouco de sonho. E seu sonho era o Seu Roberto. O Roberto dela.
Nessa sexta-feira ela sentia seu coração dançar com as folhas rodopiando ao vento. Era dia dos namorados. Ela nunca dera importância a esse dia, nunca trocara presentes ou juras de amor. Nem fazia questão. Romantismo era para os ricos e tolos.
Tantos anos trabalhando para Seu Roberto, tantos dias dos namorados, das mães, disso, daquilo, natais e anos novos viram passar, indiferentes, por que aquele seria especial?
Ele estava, como sempre, no estúdio, de onde só sairia na hora do almoço. O dia correu normalmente, a não ser por Suriellen se sentir como num conto de fadas. Ao final da tarde, despediram-se, como usual. Antes de sair, porém, Suriellen trocou a toalha da mesa, colocou em cima as flores que trouxera de manhã e também o bolo que fizera durante a tarde. A casa toda estava mais colorida. Mais cheirosa. Mais... romântica.
Ele era distraído, jamais ligaria os mimos ao dia dos namorados. Suriellen, porém, não precisava que ele soubesse. Importante era a sensação de felicidade que sentia naquele momento.
Feliz dia dos namorados, Patrãozinho. Feliz dia dos namorados, meu Amor.
Imagem
Heidelberger Schloss von William Turner 1844 1845
Page URL:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Joseph_Mallord_William_Turner_-_Norham_Castle,_Sunrise_-_WGA23182.jpg
File URL:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/33/Joseph_Mallord_William_Turner_-_Norham_Castle%2C_Sunrise_-_WGA23182.jpg
J. M. W. Turner / Public domain
Comentários
Zoraya, esse texto tem segunda parte? Até agora, não morreu ninguém! Nem o marido da Suriellen, que sequer mereceu nome de batismo.
So romantic...
Conheço pelo menos uma Suriellen que depois herdou tudo do Seu Roberto. Às vezes a dedicação compensa...
Ah, as nuances do amor. Para mim, Suriellen e Seu Roberto são os ícones do amor platônico. Tudo o que gira em torno, permanece sem ser verbalizado alimenta de delícias seus espíritos... ok, eu também fiquei esperando pela parte 2.