DE NOVO, TIA? >> Albir José Inácio da Silva


- Não faça isso, Nanci! Você lutou tanto! Não vá jogar tudo fora! – advertiu a diretora.

- Chega, acabou! Eu não preciso disso! Posso trabalhar em qualquer lugar. Sou jovem, sou inteligente e sou bonita. Até puta eu posso ser! – gritou.

Uma colega correu a fechar a porta da sala dos professores. E Nanci continuou:

– Nunca tive de aturar isso, nem de pai, nem de mãe, nem de marido. Não vou aguentar esse endemoninhado.

Abriu a porta de aço, que bateu com estrondo na parede, pegou o casaco e a bolsa. O armário estava até o meio de cadernos, livros e apostilas.

– Pede ao servente pra jogar fora essa porcaria toda. Nunca mais quero saber disso.

- Depois você vê isso com calma, Nanci. Vai pra casa, descansa! – tentou outra colega.

Nanci desceu assim da sala de aula depois de aplicar a prova. Cinco professoras estavam na mesa, além da diretora e de outras que foram chegando atraídas pelos gritos.

Não foi nada disso que Nanci sonhou pra sua vida. Embora pó de giz e trombadinhas não fizessem parte dos seus sonhos na infância, filha professora parecia o único objetivo do seu pai desde que ela nasceu. Nem sabe quantas miniaturas de quadro-negro ganhou nos aniversários. Mas lembra-se do pai quase desmaiando de felicidade no dia em que ela passou pra Escola Normal.

Não chegou a vibrar com a carreira, mas o carinho dos colegas e a felicidade do pai compensavam os moleques mal-educados no estágio. Lentamente foi se encantando com a escola, compreendendo melhor a infância e a juventude. O vestibular, a formatura, o casamento e o magistério foram se sucedendo como se estivesse escrito no manual da sua vida.

Algumas coisas ainda lhe eram insuportáveis. No início achava engraçadinho quando as crianças do jardim e das séries iniciais a chamavam “tia”. Mas aquele “tia” na voz de um galalau maior que ela, dava-lhe engulhos.

Pai e marido eram encantados com o trabalho de Nanci. Isso dava forças pra empurrar a vida sem grandes sofrimentos, apesar do salário congelado, da falta de material e dos alunos sofríveis.

A direção da escola e a Secretaria de Educação, em reuniões e longas apostilas, começaram a exigir aprovação dos alunos porque a repetência levava à evasão. Ela sabia que o objetivo era melhorar os índices da educação que despencavam ano após ano. Mas aqueles argumentos até poderiam ser engolidos não fosse o aspecto prático: mais quinze dias de trabalho em dezembro até às vésperas do Natal.

A coisa funcionava assim: ao final da primeira semana de recuperação os aprovados estariam de férias. Se sobrasse alguém, outra semana de aulas e prova no final.

Com toda paciência do mundo, ao final da primeira semana, Nanci deu a prova para os recuperandos do sétimo ano - um textinho de apenas um parágrafo e cinco perguntinhas retirados de um livro do terceiro ano. Praticamente ditou as respostas. Não havia como não passar, pensou Nanci. E todos passaram, menos o Elinho.

Elinho repetiu três vezes o sétimo ano e contava já dezessete primaveras. Elinho que a mãe dizia perseguido pelos professores. Elinho sobre quem a diretora dissera “ele precisa passar, já vai fazer dezoito.”

Elinho deixou quatro perguntas em branco e na última escreveu “num sei”.

Pacientemente Nanci repassou a prova com Elinho durante toda a semana e, conforme orientação das colegas e da direção, repetiu as mesmas questões na sexta-feira.

Elinho errou o próprio nome no cabeçalho e garatujou uns rabiscos incompreensíveis nas quatro primeiras questões. Nanci foi remendando aqui e ali disposta a aprovar, mas...

As mãos de Nanci tremiam e os olhos piscavam lágrimas quando ela bateu com a prova na mesa de reuniões e apontou a resposta da última pergunta para as colegas:

- Ja diçe qe num sei, tia.


Comentários

branco disse…
tragicômico. grande albir, grande texto, um grande problema que se arrasta ao longo dos anos. para ser revisitado e relembrado sempre até que uma mudança aconteça.
Zoraya Cesar disse…
Pobre Nanci! Fala pra ela pensar nos que conseguiram aprender. Pq na sala de aula, assim como na vida, tem gente q está além do alcance de nossas mãos... Vc sabe q vc é leitura obrigatória, né?
Albir disse…
Zoraya e Branco, obrigado queridos!

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