O CIRCO >> Carla Dias >>


Grande circo, esse. Pena que não tem palhaço que fomente alegria, tampouco trapezista que nos faça sonhar com o voo. Não há alegria nessa tenda de dissimulações e injustiças.

Um circo de horrores do qual não somos mais meros espectadores, mas sim os cruelmente domesticados para serem exibidos como curiosas criaturas. Porque, em algum momento, deixamos a sabedoria, que nos concede o milagre de decidirmos o nosso caminho, nas melindrosas mãos-prisões dos que cochicham em nossos ouvidos – manipuladores e indiferentes ao desfecho que nos espera – o que queremos escutar para acalmar ansiedade e calar questionamento.

Bem-vindos ao circo dos dissabores!

Aqui há uma grande variedade de tragédias para serem ruminadas em tempo infinito. Uma verdade gritante para se encarar com dolência aguda: somos colaboradores ativos da miséria do mundo. Nós, esses bichos amestrados pelo desejo próprio, e por ele fazemos o que é impossível de se desfazer e que, às vezes, leva o outro à lona, para não se levantar mais. Mas como seria diferente? Somos bichos de instinto calcado no egocentrismo e na necessidade intrigante por poder. Pisamos uns nas cabeças dos outros por dinheiro. Matamos em nome do amor e do Deus. Somos indiferentes a quem não desperta em nós curiosidade. Nossa intolerância é inspiração para a arquitetação de extinções espetaculares.

Neste circo, adjetivos são usados para compor uma sonata de ofensas. Predadores da sobrevivência alheia abocanham suas presas de maneira espetaculosa. Os espectadores, agora poucos, ditos escolhidos, assistem a tudo com ar blasé, enquanto, por dentro, celebram suas vitórias diante dos inferiores. Como apreciam subjugar, humilhar, matar de fome, de sede, de carência de direitos.

Esperávamos sim um circo de delícias e gargalhadas; um ponto de encontro para a descontração e o deleite. Por que isso nos seria negado? Acabamos assim: desfilando nossas misérias aos que nos tornaram miseráveis. Dando cambalhotas para entreter o desejo deles por superioridade. Nós, os animais amestrados, bailando ao som do cansaço e da zanga, provocando delícias e gargalhadas naqueles que nos desumanizaram. Os descontraídos e deleitosos diante do nosso show de desesperança.

Bem-vindos ao circo dos horrores!

Há aqui justiça mantida em cabresto, respeito qualificado como supérfluo, direito negado com esmero. Os palhaços nem sabem o que é piada. Os trapezistas têm medo de altura. Ao bicho-homem não se dá de comer, que a fome, em todas as suas interpretações, é capaz de mantê-lo prostrado, o serviçal perfeito para quem pouco se importa com as aberrações que propicia.


Imagem © Edward Hopper

Este texto faz parte do projeto Crônica de um ontem e foi publicado originalmente em 15 de março de 2017.

carladias.com

Comentários

branco disse…
pela data lá se vão 3 anos. bons textos e/ou ótimas crônicas costumam (ou precisam ) ser atemporais. este é o caso e penso que vai continuar sendo até que a lona desabe sobre todos.
Carla Dias disse…
Pois é, Branco, o problema é antigo, mudou somente o cenário, que está mais no escancaro, desnuando nossas mazelas, sem piedade.
Zoraya Cesar disse…
Carla Dias, vc já nasceu clássica. Tudo o q vc escreve é atemporal, pq vc fala do q é profundamente humano. "Demasiadamente humano". Lamento apenas q, 3 anos depois, mais q atemporal, especificamente essa crônica seja tão atual.
Albir disse…
A dor de ontem que se agudiza.
Carla Dias disse…
Pois é Albir. Antes esse texto fizesse nenhum sentido.

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