UM DESVIO NO CAMINHO É OUTRO CAMINHO - 4a e última parte >> Zoraya Cesar

O Svapna era lindo, colorido, uma pintura em movimento. Tentáculos esguios saíam de seu corpo, dançando ao som de um assobio melodioso e sublime. Um espetáculo onírico de cor e música, que induzia a vítima à letargia e ao sono quase irreprimíveis. Assim, indefesa, não tinha como evitar os tentáculos afiados e venenosos. 
A forma onírica do Svapna era um engodo.
Os tentáculos dançantes eram um
convite à morte.

Se o Craobh sugava suas vítimas, o monstro-tentáculo as comia, ainda vivas, aos nacos. Poucos escapavam do ataque de um Svapna, a não ser os pigmeus albinos Darban Tsagaan, os mais exímios caçadores do deserto e das florestas, capazes de derrotar mesmo o terrível Craobh. Curandeiros e Mestres das Armas também eram adversários potentes, quase à altura de um Svapna. Quase...

Contendas físicas não eram a especialidade de Margoleen, que, há muito sem travar um combate, estava destreinada. E exausta, enfraquecida, meio aturdida. 

Svapnas não eram bestas-feras, mas seres inteligentes, que aprendiam rápido as fraquezas do oponente. Só morriam quando todos os tentáculos eram arrancados, e, até lá, sua força e destreza continuavam intactas, como se ileso estivesse. Moviam-se velozmente, e, às vítimas, não era dada opção que não o enfrentamento – virar as costas a um Svapna era assinar a sentença de morte. Margoleen não tinha vontade de morrer. Muito menos sem lutar.

Desembainhou a Adaga da Noite Infinita, que brilhou como centenas de pequenas ametistas. 

Dois tentáculos chicotearam à altura dos joelhos de Margoleen, tentando derrubá-la, mas ela os cortou com precisão. O monstro soltou um silvo agudo e altissonante, que feriu os ouvidos de Margoleen, forçando-a a se encolher de dor. Mesmo assim, conseguiu esquivar-se e cortar mais um tentáculo. Dessa vez, o silvo foi tão penetrante, que a Curandeira sentiu dor em seu cérebro. O monstro aproveitou esse momento de fraqueza para atacar e, novamente, a Adaga da Noite Infinita fez seu trabalho. O ferrão venenoso, no entanto, arranhou o ventre de Margoleen. 

Agora, ambos os contendores tinham pressa em terminar a luta. Afastaram-se. Os últimos tentáculos do Svapna dançavam ainda mais hipnoticamente, sua melodia ainda mais sedutora. 

Margoleen quase sucumbiu. Ademais, o veneno começara a entorpecer-lhe os nervos. 

Vou morrer, mas ele também.

Abaixou a cabeça, semicerrou os olhos, afrouxou a mão que segurava a Adaga... No afã de vencer, o Svapna caiu na armadilha, os tentáculos como lanças em riste. Margoleen endireitou-se, empunhou a arma e amputou-os.  O monstro caiu,  uma gelatina derretente e descolorida, soltando um cheiro pútrido nauseante. Mas Margoleen fora atingida mais uma vez.

Seus joelhos dobraram. Tentou, em vão, arrastar-se para uma caverna próxima, a fim de se proteger das vespas carniceiras e outros necrófagos. 

A garganta seca, os olhos embaciados, os músculos inertes, Margoleen desesperou-se. Morreria ignominiosamente, como uma neófita idiota. 

Seu último respiro seria o fedor do Svapna; sua última visão... eu mereço, pensou, desgostosa, morrer delirando com Ishtmaeil...

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Margoleen acordou na segurança
de uma caverna.
E na presença instrigante de Ishtmaeil.
Acordou dentro da caverna, enrolada em sua manta de viagem, aquecida por uma fogueira. A Adaga da Noite Infinita estava a seu lado. Assim como Ishtmaeil! 

Lá estava ele, exatamente como lembrava: baixo, atarracado e forte como um touro das montanhas, as pupilas cor de lava incandescente. À primeira vista, seu rosto redondo e bonachão, seus gestos desengoçados, sua túnica amarfanhada lhe davam um ar de parvoíce. Pobre é aquele que acredita nas aparências! 

Na verdade, Ishtmaeil era um lutador temível, um Curandeiro extremamente competente e sagaz. Aliado inestimável - ou adversário formidável.  Divertido e sarcástico. O melhor amigo de Margoleen na Escola de Curandeiria e Artes Mágicas dos Dez Círculos. Até largar tudo – pouco antes de receber sua graduação de Mestre - e reaparecer como seguidor dos Desequilibradores.

- Essa foi por pouco, hein, Marlee – disse ele, com sua voz de barítono, usando o apelido que lhe dera quando ainda eram jovens, tão jovens que ela nem acreditava o quanto já fora um dia.

- Serei breve. Tenho mais o que fazer que salvar Curandeiras ineptas – Sentou-se, sorrindo. Deu-lhe um líquido de gosto repugnante, que Margoleen bebeu sem reclamar. Estava fraca demais até para falar e sabia que a tisana salvara sua vida. Mas, por que Ishtmaeil a ajudara? De onde viera? O que fazia ali? Perguntas, perguntas...

- Você se saiu bastante bem, AmigaIrmã. Claro que lutou como a Curandeira arrogante que  é, mas... 

(Por que então não me acudiu antes? Podia ter morrido, cretino. Depois eu é que sou arrogante). Ele pressentiu-lhe os pensamentos: 

- Eu ainda estava longe quando o combate começou. E, por mim, quanto menos Curandeiras circulando por aí, melhor. Só te salvei porque... porque... – Ele tartamudeou, e, perdendo a altivez, segurou a mão dela, para assegurar que falava a verdade, como quando eram crianças.

- Não matei a Mestra, Marlee, você tem de acreditar em mim. Não a matei, não a atraí para armadilhas, e, se tivesse conseguido alcançá-la, eu a salvaria. Sei que poderia. Eu teria... – A voz embargou. O Curandeiro Renegado engoliu as lágrimas. 

– Ela te nomeou como Discípula Escolhida, não foi? A Sucessora Eleita. Você merece. Sempre fez por merecer. Abri sua algibeira e peguei uma das folhas, uma só, do que restou da Mestra. Sua Adaga maravilhosa está guardada ali no canto. – Beijou a mão de Margoleen e levantou.

- Você ficará bem, antiga AmigaIrmã. Fechei a entrada da caverna com o Feitiço do Trancamento, esse refúgio ficará inexpugnável. Deixei tudo o que é preciso para sua recuperação. O resto é com você.

Margoleen tentou gritar para que ele não fosse embora, não queria ficar sozinha, e sempre o amara tanto. Precisava entender por que abandonara seus ideais... Mas a voz não saía. 

- Antes de ir, quero apenas te dizer duas coisas e faça o favor de guardá-las nessa sua cabeça oca: pense antes de me criticar, talvez meus motivos sejam os certos. E te salvei dessa vez porque nós éramos AmigosIrmãos de Cura, mas da próxima vez que nos encontrarmos, você será considerada minha inimiga. E eu vou te tratar como tal. 

Disse tudo isso sem olhar para ela, de costas, perscrutando o infinito. E partiu.

Margoleen chorou como uma criança, quase sufocando por causa dos músculos ainda semi-paralisados. Sim, Ishtmaeil, é bom que você também se lembre disso. 

Entrou, então, em profunda meditação. Sua cura dependia de repouso absoluto. Sua missão, dada pela Mestra Hosmaryn, estava apenas começando. 

Ela sabia que, pela lei do Equilíbrio de Todas as Coisas, Ishtmaeil precisaria de sua ajuda em algum desvio do Caminho.

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Um desvio no caminho é outro caminho



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IMAGENS 

Svapna (nunca ninguém conseguiu descrever exatamente como era um Svapna. Apenas os pigmeus Darban Tsagaan têm desenhos acurados, mas eles não os mostram. Essa é uma imagem aproximada)

Caverna

https://www.goodfreephotos.com


Comentários

Érica disse…
"Ela sabia que, pela lei do Equilíbrio de Todas as Coisas, Ishtmaeil precisaria de de sua ajuda em algum desvio do Caminho." Hummm isso tá com cheiro de cenas dos próximos capítulos... Acho que vai virar a saga de Margoleen rs
branco disse…
muito bom. melhor que muito bom, melhor que excelente. aguardemos a próxima temporada, promete !!!!!!
Anônimo disse…
Quero mais, muitos outros capítulos, outros caminhos e seus desvios, paxonei pelo mundo mágico e quero saber o que vai acontecer na próxima curva ;)
Albir disse…
Seus monstros são tão bem construídos que a gente fica querendo conhecê-los, mesmo sabendo que o encontro significa morte.
Carla Dias disse…

Zoraya, aprendi a ler seus textos em partes somente quando publicada a última delas. Ficava na maior ansiedade com o que viria e a espera – quem, quando ou o quê - sempre me deixa meio louca.
Assim, li as quatro partes agora e adorei o enredo, os personagens e toda magia das criaturas, poções e afins. Porém, devo admitir que vou esperar o livro ser publicado. Como assim ter de esperar até sei lá quando pra saber como foi receber o diploma, reconectar-se com o melhor amigo e vencer os vilões?
Agora, é minha vez: quando sairá o livro?

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