NEVE NEGRA >>> Nádia Coldebella

Primeira Parte: 
Escuridão, sangue e frio


Há muito e muito tempo, havia um reino conhecido pelo amor que seu povo devotava a rainha, uma mulher muito bonita e bondosa. Elora era seu nome e havia quem jurasse que ela não era uma mulher comum, mas uma rainha também entre as fadas. Talvez assim pensassem porque, em dias ensolarados, era muitas vezes vista sozinha pelos jardins do palácio, entoando, em voz baixa, uma delicada melodia. Várias vezes durante a semana, mesmo a contragosto do rei, ela costumava sair com suas criadas para passar as tardes em companhia dos menos abastados, agonizantes e doentes. Trazia-lhes a alegria contagiante que emanava de sua face, olhos e voz e as crianças costumavam cercá-la por isso. Embora as amasse, a rainha sofria porque, na presença dos pequeninos, era lembrada de que nunca poderia dar um filho ao rei.

Então, um rigoroso inverno derramou seu manto branco sobre o reino. Chegara magno, escuro e cinzento, deixando o coração da Rainha Elora apertado e repleto de tristeza. Isolada em seus aposentos, permanecia, por horas, sentada em frente a grande janela de esquadria de ébano, olhando para o céu pardacento - quiçá procurando um raio de sol - com agulha, linha e tecido na mão, sem executar qualquer movimento. Depois ela deixava o bordado de lado e punha-se a dormir um sono agitado, povoado por demônios e maus espíritos que secavam a vida ao seu redor. Acordava aterrorizada, pois seus pensamentos lhe diziam que tudo o que lhe era mais precioso logo seria perdido.

 A angústia daqueles dias refletiu-se em sua tez: a pele branca parecia opaca, o brilho dos olhos pouco a pouco apagava-se e a alegria, antes tão presente em cada expressão do seu rosto, agora não existia mais. Certa noite, entregou-se a devaneios ainda mais terríveis e não encontrou forças para se levantar no dia seguinte e nem nos outros. Doutos homens, versados em medicina, magia e ciências desconhecidas vinham para curá-la, mas saiam desesperançados dos aposentos reais Nada podiam fazer, diziam. A rainha definha, diziam. É maldição antiga e Vossa Majestade deve preparar-se, pois logo o fio da vida da Rainha Elora será cortado.

O rei, inconsolável, orava. E parecia ter sido providencialmente atendido, pois foi procurado por dois homens muito pequenos e de traços grosseiros. Estavam vestidos com seda, linho e brocado e por sobre os ombros traziam um manto de pele de raposa que, por causa de sua estatura reduzida, fazia as vezes de capa. Embora as vestes denotassem a origem nobre, a aparência de ambos era espurca. O mais velho, que parecia ser o líder, tinha cabelos muito lisos, negros, sebentos e grudados à cabeça. Seu olhar era desencorajador e em meio a face trazia um nariz grande, roliço e esburacado, constantemente vermelho em virtude de fortes e incontidos espirros que misturavam-se ao grasnido de sua voz. Apresentou-se pomposamente como Esternuto, mas os servos rapidamente o chamaram de Atchim. O outro anão era muito mais baixo, de olhar estrábico e perdido, como se estivesse em transe. A pele era purulenta e suas mãos traziam unhas sujas e pontiagudas. Não falava, apenas bocejava de tempos em tempos, revelando dentes negros e deformados. Foi apresentado pelo mais velho como Madorno - a alcunha de Soneca, dada pelo conselheiro-mor, agradou mais ao rei. A forte repulsa que o monarca sentiu cedeu quando Esternuto anunciou, de forma cerimoniosa, que vinham em nome da poderosa feiticeira Àngelle Lefevre e que esta oferecia seus conhecimentos em troca de hospedagem.

Ninguém, naquele reino, jamais havia visto uma mulher com a beleza de Àngelle Lefevre. Sua presença era imponente e desconfortável, seu olhar penetrante e sibilino. No dia de sua chegada, os presentes estremeceram, desconfiados, mas abaixarem suas cabeças involuntariamente enquanto a feiticeira parecia deslizar pela sala do trono. O rei, fascinado, não conseguiu desviar seus olhos dela. O desejo do seu coração não ficou oculto e o sofrimento dos últimos dias parecia distante. Não foi um escândalo no palácio quando se soube que a feiticeira permanecia ao lado da cama da rainha durante o dia e sob os lençóis do rei a noite. Todas as manhãs deixava o rei e, altiva, entrava no quarto da rainha em companhia de seus dois negregados servos, encontrando-a em estado semiconsciente. Esternuto, com rudeza, ordenava às criadas que saíssem. Madorno, que trazia consigo, embalado num pano preto, um espelho com molduras douradas, erguia-o diante do rosto e, docilmente, entregava-se a uma espécie de sono: suas pupilas dilatadas tornavam-se ainda mais estrábicas; seus traços faciais suavizavam-se, a respiração passava a ficar espaçada e lenta, a pele adquiria um aspecto azulado muito sutil e, imóvel, ele poderia responder, em tom pastoso, as perguntas feitas pela feiticeira.

O outro anão depositava aos pés da feiticeira um baú, que ela abria com todo o cuidado. Angèlle retirava dele um pequeno vidro e punha três gotas de seu conteúdo negro sobre os lábios da Rainha Elora, que mergulhava em um sono profundo. Em seguida, despia-na e arrumava seu corpo na cama em forma de cruz: braços estendidos e pernas juntas e retesadas. Escolhia sete pedras no baú, cada uma contendo inscrições em uma língua antiga, e as distribuia sobre os tornozelos, pulsos, testa, peito e abdômen da rainha. Separava algumas ervas, folhas e cascas de árvores contidas em uma pequena vasilha dentro do baú e as estendia a Esternuto, que, recluso em um canto escuro do quarto, se punha em uma árdua tarefa de maçarocá-las com um pequeno pilão. Mistura pronta, a feiticeira a esfregava avidamente na área genital da raínha, não sem antes solicitar a Madorno as palavras, que o anão passava a repetir freneticamente até completar um ciclo de sete repetições. Então, todas as pedras eram retiradas, o espelho era novamente embalado, a rainha era limpa e vestida e nenhum passo daquele ritual era revelado.

O rigor do inverno foi sendo deixado para trás e, pouco a pouco, a rainha dava mostras de restabelecimento e, em uma manhã iluminada, logo após o fim do ritual diário, levantou-se de sua cama. Desapercebida da presença da feiticeira, dirigiu-se até a grande janela de esquadrias de ébano e observou as terras reais recobertas por uma neve cândida, que refletia placidamente os raios solares. Uma porção de neve agarrara-se ao batente negro da janela e Elora abaixou os olhos para observá-la. Com uma agulha na mão, Àngelle aproximou-se dela, que, gentilmente, estendeu o dedo da mão esquerda. A rainha não sentiu dor, mas esperou, serena, que uma gota de sangue pingasse sobre a neve do batente da janela. Impressionada com contraste das cores, moveu os lábios e cantarolou a delicada melodia que costumava entoar durante seus passeios nos jardins reais.
- Negra como o ébano, vermelha como o sangue, branca como a neve - Madorno recitava as palavras como um mantra profundamente acolhido pelo coração de Elora.

Naquele dia, a feiticeira e os dois anões despediram-se do castelo, não sem antes deixar, à cabeceira da cama da rainha, o espelho de moldura dourada. Naquela mesma noite, o rei reclamou seus direitos de esposo. Pouco tempo depois, foi anunciado a todo o reino que o casal real fora abençoado com um herdeiro, para a alegria do povo que celebrou a notícia com festas e agradecimentos. Havia quem dissesse que a ordem havia voltado ao palácio, mas desde seu adoecimento, a rainha nunca mais fora a mesma.

Poucos sabiam que, antes de partir, Esternuto grasnara sobre o afeto que o Rei nutria pela feiticeira. E ninguém sabia que ela, em seu íntimo, desprezava a criança que crescia em seu ventre, que lhe roubava a beleza e a vitalidade. Elora não saia mais para as visitas costumeiras e permanecia muito tempo nos jardins reais. Só que não cantava mais, apenas se punha sentada, quieta, de testa franzida, rosto cansado e mãos sobre o ventre. Quase não falava, mas era comum perceber seus suspiros profundos, seguidos de gemidos que pareciam ser de dor e consternação.

Já era novamente inverno quando o nascimento da criança anunciou-se. No aposento real, o fogo crepitava na lareira, presenteando a rainha com chamas alaranjadas e bruxuleantes. Ele arriscava-se e compunha uma coreografia lúgubre nas paredes de pedra clara, agora cinza-chumbo por causa do breu da noite - algumas vezes, pálidas e encolhidas, quando os relâmpagos lançavam seus flashes pelas janelas mal cobertas pelas grossas e sanguíneas cortinas de veludo. De pouco em pouco, as cortinas pesadas elevavam-se no ar, plumas esvoaçantes e espectrais, acariciadas pelo vento que anunciava, em silvos lamurientos, as pequenas e gélidas gotas de chuva que agarravam-se a superfície do velho espelho e deslizavam lentamente, percorrendo uma trajetória incerta que era acompanhada atentamente pela monarca. Sentada inerte e de olhos injetados perto da janela, ela parecia não perceber os contornos de um rosto quase humano, de olhar brilhante e funesto que revelava-se a cada reflexo prateado causado pela tempestade. As vezes ela levantava-se da cadeira e andava, retorcendo-se e gritando as dores do parto que se aproximava.

Mais tarde, naquela noite, já febril, ela perdeu os sentidos e foi levada até a cama. Ao recobrar a consciência, soube que uma parteira havia sido chamada, porque o esposo, que partira há algumas semanas a procura de Àngelle, ainda não voltara. Ela sabia, porém, que o bebê não esperaria pela feiticeira e pelo pai, pois as contrações pouco a pouco intensificavam-se. Resolveu entregar-se calada a cada dor dilacerante de seu corpo querendo expulsar a criança e, instintivamente, pôs-se a empurrar até sentir que a cabeça do filho havia alcançado a luz. Ao perceber que todo o corpo dele saia, suspirou aliviada, mas agitou-se quando ouviu os murmúrios e gritinhos de admiração das mulheres presentes.

O recém-nascido foi colocado ao seu lado e ela pode contemplar a criança mais linda que já vira. Negra como o ébano, vermelha como o sangue e branca como a neve, lembrou-se, ao perceber os cabelos pretos da menina, sua pele extremamente alva e os lábios vermelhos, tal qual a combinação do seu sangue com a neve na janela negra. A pequenina moveu-se em seus braços e movimentou a boquinha em direção ao seu seio descoberto, sugando-o prontamente.

 A tempestade passara e os primeiros raios solares surgiam no horizonte quando o rei retornou em companhia da feiticeira e dos dois anões. Foi recebido com notícia do parto difícil da rainha, que havia dado a luz a uma menina de beleza assombrosa. Dirigiu-se aos aposentos de Elora e pode vislumbrar que uma réstia dourada da luz da manhã atravessava as cortinas, refletindo no espelho e incidindo sobre uma criança de beleza inigualável. Ela ainda estava sugando o seio daquilo que havia sido uma mulher, agora um corpo seco e completamente sem vida. Em seu estarrecimento, o Rei não percebeu o horror no rosto da feiticeira e nem deu-se conta de que Madorno havia fixado seus olhos no espelho, pendurado logo acima da cama, e pronunciado as três palavras que devem ter sido as últimas a tocarem os lábios da rainha: escuridão, sangue e frio.

Continua em 20/02/2020.

Comentários

Solário disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Solário disse…
Adorei Nádia. Estou ansioso pela continuação.
Zoraya Cesar disse…
pontequepartiu. simples assim.

esse conto ficou na minha memória, e agora está ainda melhor. pontequepartiu.
Albir disse…
Assustado, mas querendo a continuação, como um passageiro de trem-fantasma.

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