TRUQUES >> André Ferrer
Ernest Hemingway - escritor norte-americano (1899-1961) |
Em vários textos, ao
longo da sua obra, Ernest Hemingway cita a arte da pintura. Nenhum desses
momentos, entretanto, é mais eloquente a respeito das suas reais intenções ao
mencionar a pintura do que em um trecho do conto Escrever. Aliás, uma das suas histórias
menos conhecidas.
Em Paris é uma festa,
Hemingway fala de alguns dos vários pintores que conheceu e, com a propriedade
de quem viveu na Cidade Luz dos anos de 1920, relaciona as soluções encontradas
por aqueles artistas à sua própria arte, a escrita. Trata-se de um livro de
memórias. Nele, o autor relata os anos em que vivera na França e era apenas um repórter
norte-americano que aspirava, um dia, tornar-se escritor. Paris é uma festa foi
escrito na década de 1950 e só foi publicado após a morte do autor.
Se neste livro
Hemingway gasta várias linhas com a tentativa de demonstrar o quanto um
escritor pode aprender com a pintura, no conto Escrever ele atinge o objetivo
com maestria. Sabe-se, claramente, que o autor valorizava a personalidade como
o único caminho para a inovação. Em nenhum outro texto, no entanto, a
experiência pessoal é tida em tão alto grau de importância em relação ao ofício
da escrita.
Por exemplo, já no meio
da pescaria (sim, o conto é sobre pescaria), fica-se conhecendo os pensamentos
do protagonista, Nick Adams.
Este, mediante um
discurso indireto livre, afirma que James Joyce sabia como Cézanne pintaria
aquela extensão de rio. E o pescador escritor lamenta: “Meu Deus, se ele estivesse
aqui para pintar. Eles morreram e isto foi mesmo o diabo. Trabalharam durante a
vida inteira e ficaram velhos e morreram.”
“Nick, vendo como
Cézanne faria a extensão do rio e o pântano, levantou-se e entrou na corrente.
A água estava fria e verdadeira.” Exato: uma sensação, a temperatura, que é um
argumento de autoridade capaz de sustentar uma proposição verdadeira. Ora, mais
Hemingway do que isso não existe.
Papa gostava tanto de
pintura (ou da relação entre pintura e escrita), que Thomas Hudson – é claro,
mais um dos seus alter egos – não é escritor, mas pintor. Hudson é o
protagonista do romance As ilhas da corrente, também uma edição póstuma.
No conto Escrever, que
integra o volume The Nick Adams stories (As aventuras de Nick Adams), lê-se
ainda: ele (Nick Adams ou, de novo, o próprio Hemingway) “queria escrever como
Cézanne pintava.”
“Cézanne começara
usando todos os truques. Em seguida, destruiu a coisa toda e construiu a coisa
verdadeira.”
Com algum conhecimento
de História, detectam-se pistas daquela grande ruptura nas artes, a emergência
das vanguardas, enquanto a Belle Époque agonizava. Aquém disso, Hemingway
aponta para aquela que constitui a maior obrigação de todo bom artista: o
esforço de imprimir a sua personalidade na obra. Sob a pena de ser medíocre, o
artista deve substituir velhos truques por novos truques. Seus próprios
truques.
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