EU QUERIA DIZER NADA, MAS JÁ QUE A VIDA INSISTE... >> Carla Dias >>

Furar pé com prego enferrujado faz chover no fim da tarde de sol. Dizem que sol e chuva é indício de casamento de viúva, mas tenho certeza de que eles se combinam somente quando menino levado da breca fura o pé com prego enferrujado, e mãe coloca pó de café lá, porque crê, assim como costumavam crer os seus pais, que é o melhor jeito de curar ferida do tipo.

Para mim, que sempre fui desconfiada das crendices, pé furado com prego enferrujado pode – e deve! – ser curado somente com sol e chuva. E abraço de pai e mãe.

Um dia, eu furei o joelho com prego enferrujado. Minha mãe até tentou, mas não fui tomar injeção, porque apesar de ela ser adepta das crendices e da alopatia, com a teimosia que me acompanharia pela vida afora, consegui que ela se apegasse mais às benzeduras e ao Merthiolate.

Saí dançando pelas ruas uma canção que acabara de aprender e soava de uma lindeza de aprumar felicidade. Era sexta-feira de manhãzinha, e na noite anterior, eu havia também aprendido a perder pessoa amada, daquelas que não há quem traga de volta em três anos, quiçá em três dias. Em três dias a canção trouxe a mim de volta à vida, o espírito pronto para se enveredar por novos desafios.

Meu avô disse que perder pessoa amada é o preço que se paga por nos jogarmos à vida, permitindo que ela opere seus milagres dentro de nós, e nos faça achegar aos que desejam e merecem nosso afeto. Eu achei o dito bem bonito, mas também de doer. E doeu de estalar algumas vezes durante a minha vida. Se há uma coisa certa, de acertamento dramático, é que ninguém traz de volta quem não quer voltar.

Balanço não é só coisa de balançar, mas também de misturar pensamentos, que quase ficamos de ponta-cabeça, às vezes até giramos feito pião. Em outras: bailarinos. Nossos pés vestidos em chinelos comprados no mercadinho, terceira geração de tiras coloridas, que já passearam pelo campo, caíram no rio, pisaram em pedras. Há muitas histórias que cabem em pares de chinelos. Há clareamento de ideias que acontece durante os passos dados com esses chinelos. E até diversão, há.

Amor silente alimenta abismo entre a verdade e a invenção. Chega uma hora em que tudo se mistura e surge uma terceira coisa: a necessidade de que ele passe. Amor silente se transforma em saudade do desconhecido, do intocado, do mistificado. Alimentá-lo é dar de comer ao desconforto, de um jeito que só deixa de opção...

Antes de resumir amor em uma opção que nem me agrada, calço os meus chinelos com tiras coloridas. Eu queria dizer nada, mas já que a vida insiste - que a tarde é de sol e chuva, que o balanço está vazio, lá no quintal, que a vida também não traz de volta quem nunca partiu -, quebro o silêncio.

E silêncio quebrado abre alas para música, não apenas para confissões.

Disco girando na vitrola em tempos de tecnologia descolada é comportamento vintage de moradora do século XXI. E na vagabundagem desse meu coração acostumado a ver de um tudo, escolher o que bem entende, levar-me para onde for, sigo. Às vezes, silente. Outras vezes, falante.


Comentários

albir disse…
Que beleza, Carla!
Viajei por meus próprios chinelos, balanços e pregos enferrujados.
Anônimo disse…
Quando li essa crônica, tive a nítida impressão de que você conhece a minha dor. Texto pertinente ao meu momento atual.

"...Amor silente alimenta abismo entre a verdade e a invenção. Chega uma hora em que tudo se mistura e surge uma terceira coisa: a necessidade de que ele passe. Amor silente se transforma em saudade do desconhecido, do intocado, do mistificado. Alimentá-lo é dar de comer ao desconforto, de um jeito que só deixa de opção...

Perfeito, exato.
Unknown disse…
Adorei! Muito bom! :)
Zoraya disse…
MARAVILHA de crônica, Carla, e as letras em caixa alta foram propositais. maravilha maravilha maravilha
Carla Dias disse…
Albir... Sempre bom quando eu posso apontar o você. Beijo!

Anônimo... Espero que a dor já tenha partido. Abraço.

Gessika... Super obrigada :)

Zoraya... Sorte minha que há quem se maravilhe. Obrigada!

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