MORRO DO FERRO: a cidade (das memórias) do meu pai [Ana Claudia Vargas]

Porque temos a tendência de olhar para baixo quando estamos no topo? Porque geralmente fazemos isso quando subimos até o último andar de um prédio ou quando alcançamos o topo de uma montanha? Será que olhamos lá para baixo para que confirmemos a nós mesmos que sim, conseguimos? Sim: fomos capazes e por aí afora?

Será?

Pois o meu pai que fará 92 anos em Dezembro tem andado assim: ele fica quase sempre olhando lá para trás ou para baixo - será que o passado seria isso? Algo ‘abaixo’ do presente? - lá para o passado mais distante, aquele que é quase invisível de tão longínquo... E então ele vai contando seus causos: de quando tinha sete anos e gostava de ouvir a avó contando... causos (e a vida não é mesmo um ciclo retorcido, deslumbrante e sempre surpreendente?), de quando o padre da cidade em que nasceu fez com que uma árvore centenária se partisse ao meio porque ficava em frente da igreja e ocultava o esplendor da dita cuja, de quando ele caçava passarinhos pelos campos, despreocupado como a gente só consegue ser na infância (quer dizer em tempos de politicamente correto, nem na infância).

E assim ele vai desfiando nomes de pessoas que já partiram pra cidade dos ‘pés juntos’ (como ele chama o cemitério) há muito tempo. Tanto tempo que ele, um senhor quase centenário, era um menino vivendo nos confins das Gerais. E sim: ele só se lembra de pessoas que se foram quando ele sequer tinha 20 anos de idade e todos vivem nas memórias dele como se fossem os adultos admiráveis que sua visão infantil construía.

Mas do que ele mais se lembra é das paisagens da cidade em que nasceu, um lugarzinho como centenas de outros que existem em Minas. Um distrito de nome meio poético que se chama Morro do Ferro e fica na região sudoeste do estado.

Morro do Ferro: desde criança tenho vontade de conhecer esse lugar de pouco mais de mil moradores, tenho vontade de andar por suas ruas de casas simplórias, subir ladeiras que quase sempre vão dar em igrejinhas pintadas de azul e branco ou não (porque como você sabe, o que há em Minas são igrejas e montanhas e montanhas e igrejas), me sentar nos bancos das pracinhas humildes que contornam essas igrejas... e conversar com o povo que passa por ali – o ‘seu’ Antônio ou a dona Francisca – e saber da vida deles... 

Ter, enfim, aquelas conversas tão interioranas e ingênuas que quase sempre são motivo de ironias para certo tipo de gente que acha que Brasil é só Rio e São Paulo até hoje, em pleno século XXI.

Pois eu penso que deveria descobrir Morro do Ferro a partir desses colóquios que teria com as pessoas que moram lá. Quem sabe assim eu não saberia mais sobre aqueles que já partiram, há muito, há tanto tempo que o meu pai – que como disse fará 92 (!) em Dezembro – era um menino de calças curtas e nunca, mas nunca mesmo, poderia saber que a vida dele seria o que foi e é e está sendo.

Meu pai agora está no alto dessa montanha e ele olha lá para baixo, e ele tenta identificar na vegetação do passado antiquíssimo – que deve ser como aquela massa verde clara ou verde escura que vemos da janela do avião – uma árvore mais familiar; aquele rio que ele atravessou na companhia do João ou do José ou do Antônio... Mas ele só enxerga nuances, imagens desfocadas e por isso (penso) ele precisa falar do que passou e precisa contar o mesmo caso muitas vezes para se certificar de que aquilo não foi invenção.

Sim: é para dizer para si mesmo que aquela viagem, aquele dia naquela fazenda ao pé da Serra dos Alemães, aquela pessoa que foi simpática ou foi rude ou indiferente lá nos dias de sua infância... que tudo isso, enfim, realmente existiu e não é só uma recordação apagada, vaga e sem vida.

Pois é, eu tenho certeza que Morro do Ferro é um lugar diferente, especial e colorido de um jeito suave como são as pinturas de paisagens do século 18 ou as telas do Guignard. Eu sei que lá (como todos os lugares desse mundo) tem problemas*, mas quero imaginá-la somente como um lugar bom de viver, habitada por  gente amigável e sincera que anda pelas ruas, que se cumprimenta e sorri.

É assim que ela existe quando meu pai fala dela, então é assim que ela se mostrou para mim e é desse modo que ela existe na minha imaginação.

* Morro do Ferro não é um sonho róseo, longe disso, com um nome desses só poderia ser uma região rica, claro, em ferro. Acontece que tiraram tanto ferro de suas entranhas que seus campos agora estão cheios de crateras e isso sim, é triste até não mais poder. Se quiser saber mais veja aqui. http://www.dcs.ufla.br/morrodoferro/MPrincipal.htm

·     Agora para ver o lado ‘poético’,  andei colocando  fotos de lá nesse link http://www.flickr.com/photos/geraesdeminas/ (e outras de Minas). Quem quiser ver, será muito bem vindo!

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