SEXTO CAPÍTULO >> Carla Dias >>


Desde muito jovem, vem desempenhando um papel importante na vida de pessoas que precisam de organização, de alguém que as ajude em decisões importantes. Foi assim que se tornou funcionária exemplar quando exercia as funções, em diferentes estabelecimentos, de estoquista, designer de vitrines, almoxarife, governanta e bibliotecária, a última, mais pela paixão pelos livros do que pelo dom de organizar e decidir pelo outro. Ainda assim, nunca foi tão fácil de se encontrar um livro na biblioteca municipal do que no período em que ela trabalhou lá.

À noite, quando a insônia lhe embaralha os pensamentos, sai de casa para uma volta pelo quintal. A necessidade de andar descalça, de roçar as solas dos pés na terra e na grama, de sentir a vida lhe tocar a contento, é frequente e insolente, porque quando se apresenta, não quer nem saber das confusões que causa. Sendo assim, os vizinhos já se acostumaram a vê-la caminhando em círculos pelo seu quintal, descalça e descabelada, e em dias mais inspirados, a improvisar danças que incluem saltos dignos de bailarinas profissionais, e a entoar cânticos em um idioma por eles desconhecido. Alguns deles, ao escutarem os passos que antecedem o passeio noturno dela, servem-se de uma xícara de café fresco, encostam cadeiras na janela, e observam a tudo, como espectadores de um espetáculo de teatro.

Já a chamaram de tudo, mas os rótulos mais populares são doidivanas e bruxa. Em fato, já houve dia em que a polícia foi até a casa da moça, porque um dos vizinhos a denunciou por ela ter rogado praga para ele, e nos dias de hoje, rogar praga e ela pegar dá em prisão, é coisa de bruxa, e das horrendas. Não sou dos que rogam praga, explicou-se a moça, o olhar cândido, as bochechas rosadas.

Acontece que o policial que atendeu ao chamado, um homem muito correto, conhecera a moça anos antes, mas sem querer. Quando viu que ela era o pivô do alvoroço causado pelo senhor que mora a três casas para baixo da dela, ficou desnorteado, com vontade de sair correndo e só parar quando não aguentasse mais ficar em pé. Mas assim como ela, ele tinha uma profissão que o encarregava de afazeres importantes. Com muito tato, utilizando-se de um vocabulário mais requintado, já que vinha de uma família de ávidos leitores, acalmou o homem, explicando-lhe que o que ele escutara fora somente a moça entoando um mantra. E antes de ir embora, o vizinho já de volta a sua casa, o policial a encarou e fez um gesto com a cabeça, profundamente agradecido.

Descobriu o seu dom já era mulher feita, com destino pronto para ser consumido: namorado que se tornou noivo e queria se tornar marido, trabalho ao qual se dedicar com gosto, vida acomodada no possível. Não tinha família, crescera em um orfanato. Também não tinha amigos, de tão tímida e ensimesmada. O futuro marido conheceu na lida, e não fosse assim, talvez não tivesse experimentado o gosto de beijo até hoje.

Era bibliotecária na época em que uma historiadora, reconhecida pelas suas benfeitorias sociais, tornou-se atuante na arrecadação de fundos para a reforma e enriquecimento do acervo da biblioteca. Elas se deram bem, tornaram-se amigas, com direito às confidências. Aos poucos, a moça foi se ausentando da realidade decidida, aumentando a sua curiosidade pela vida acontecendo, o que acabou com o seu noivado sem que doesse, abrindo-se a um universo de possibilidades.

Mas jamais aquela... Naquela possibilidade jamais pensara.

Quando a amiga adoeceu, sabia que ela partiria em breve, mas não de onde vinha tal certeza, nem mesmo por que a aceitava com tamanha serenidade. Sabia mais do que os médicos, já que eles sorriam largamente ao dizerem assuntos clínicos que endossavam o contrário. Sendo assim, sentou-se ao lado dela, cuidou-lhe, e enfim, no dia em que amanheceu com o prenúncio de que a hora dela estava chegando, a moça segurou-lhe as mãos, e de uma sabedoria que não sabia de onde vinha, confidenciou-lhe que, apesar de não compreender como, estava ali para ajudá-la com o desfecho.

A historiadora sorriu tão bonito que encheu os olhos da moça de lágrimas. E com a voz miúda, disse a ela que essa era a herança que não poderia deixar a ninguém mais, senão a ela, quem conhece o poder do comprometimento, assim como a necessidade de se orquestrar desfechos que as pessoas - envolvidas em suas histórias de vida - não percebem serem possíveis ou mesmo necessários. Como naquele momento, em que ela tinha de partir, mas esse não era o seu desejo, não era o desfecho que escolheria, se lhe fosse dado o direito de escolher. E o que a moça não percebeu, tamanha era a sua emoção, foi a presença do filho da historiadora, o policial, que escutou a conversa, e que também era grande admirador da mãe e da sua profissão de orquestradora de desfechos.

Foi assim que começou.

Há anos, a moça tece essa teia frágil que recai sobre o destino. Cada orquestrador de desfechos conduz a tarefa da maneira que escolhe, e diferente da amiga que lhe concedeu o dom, ela não soube abraçar o lado empírico da profissão, mergulhando em um universo de metáforas e rituais, acrescido por uma melancolia que lhe agradava os sentidos. Voltou-se para a pessoa acostumada ao silêncio da casa, quebrado por barulhos crispados, como o do chão de madeira velha, precisando de reparos, das janelas batendo, com o vento anunciando tempestades, da xícara tocando o pires, depois do primeiro gole de café.

É fato que o orquestrador de desfechos lida somente com conclusões difíceis, oriundas de uma negação feroz de seus detentores. E que esse profissional tem de confraternizar com os medos mais pungentes, e isso leva os mais nobres, aqueles que sempre pensam primeiramente nos outros, a se sentirem incapazes de assumir amores, sabendo que, logo adiante, terão de lidar com o que assombra os seus afetos. E isso parte qualquer coração. E ela teve o coração partido tantas vezes, que teme não conseguir colá-lo em uma próxima tentativa de ser feliz. Então, é apenas quem é, com direito a todas as mazelas da profissão, assim como a importância de ser fundamental na escrita da vida de tantos.

Como orquestradora de desfechos, ela se apresenta ao cliente, logo após ele ter sido atendido pelo catalogador de suspiros, que também o tranquiliza ao identificar a origem dos mesmos, e o torna mais aberto a aceitar os desfechos, principalmente quando eles são avessos aos que ele desejava. Ela sempre se senta ao lado dessa pessoa, que a recebe no seu dentro, mesmo sem enxergá-la, e coloca os braços sobre os seus ombros. Então, ela é capaz de lê-la como se lesse um livro, e percebê-la em todas as nuanças, para então conduzi-la aos desfechos que lhe cabem, os mais dignos cultivados, durante uma vida.

Durante o seu sono inquieto, quase sempre descambando para a insônia, ela sonha raramente. E quando acontece, ela experimenta da sensação da presença de outro. É a mesma sensação de quando o catalogador de suspiros, atrasado em seu fazer, esbarra com ela na casa de um e outro cliente, pousando sobre ela o olhar, por alguns minutos. E ela sempre acorda afoita, com o coração apertado. E desprovida do sono, apega-se a um livro e ao silêncio, até que o amanhecer aconteça.

Ela mora só: de solidão e de companhia.


Comentários

Zoraya disse…
"orquestradora de desfechos", que lindo! E gostei muito da ideia de os profissionais se encontrarem. Romance já! Beijos
Carla Dias disse…
Zoraya... Você está botando lenha nessa fogueira... rs. Agora, falta apenas 1 profissional, depois acaba. Depois vai virar outra coisa :)

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