AGOSTO DE ABRIL >> Albir José Inácio da Silva
O rádio era o objeto mais importante da casa e ficava em cima da cristaleira para que as crianças não o alcançassem. Já existia televisão, mas pra nós só era possível imaginar um rádio que mostrava figuras.
Nem o rádio entendíamos bem o que era, nem o que dizia. Gostávamos das músicas, mas as palavras eram difíceis e entrecortadas por ruídos e chiados que obrigavam os adultos a ficarem de pé junto à cristaleira. Olhando para cima, eu tentava decifrar as caras, os gestos e os comentários daquela gente.
E as caras ficavam muito preocupadas, principalmente depois do toque que introduzia a voz grave do locutor: “Aqui fala o seu Repórter Esso em edição extraordinária...”. Naquele vinte e cinco de agosto a bomba era a renúncia de Jânio Quadros. Renúncia eu não sabia o que era, mas Jânio Quadros eu já ouvira muitas vezes.
A música da vassourinha durante a campanha não me deixava esquecer. Antes a cara dos meus adultos ficava boa quando se falava nele. Era a esperança, diziam, depois que Vargas foi sacrificado naquele outro agosto em que eu não era nascido. Ia moralizar a casa da mãe Joana em que se tinha transformado o país. Moralizar devia ser arrumar porque, segundo eles, o país virou uma bagunça.
Mas agora já não havia elogios ao homem da vassoura. Ele traíra os eleitores dando medalhas a terroristas e desafiando aliados e benfeitores que nos mandavam latas de trigo com letras da Aliança Para o Progresso. De qualquer forma, renunciou. E renunciar não parecia nada bom.
- Ele já deve estar preso – disseram. E eu pensei “se ele foi preso, o que fizeram com a vassoura?”. Nunca entendi por que o Presidente precisava de uma vassoura. Uma vez me responderam com alguma impaciência, como se todo mundo já soubesse: - é pra varrer a corrupção. Claro que eu não sabia o que era corrupção, mas imaginei que eram papéis e documentos ruins que, amassados ou rasgados, eram varridos pelo Presidente.
Depois da tal de renúncia a situação deve ter piorado porque ninguém ficava mais alegre com o “reportelesso”. Todos falavam de ameaça comunista, de greves, de racionamento – esse eu sabia que era ruim porque faltava açúcar, carne e feijão. Diziam que a coisa ia de mal a pior e que o Brasil não tinha mais jeito.
O rádio falou de parlamentarismo e eu não sei nas outras casas mas na minha ficaram bravos de novo. Isso era coisa de estrangeiro. Em país de macho o presidente manda, não faz figuração. Mas, também, esse frouxo do Jango, é melhor que não mande nada mesmo.
Nem tudo era cara feia e o Brasil foi campeão no Chile com Pelé, Garrincha e outros nomes que aprendemos na alegria dos adultos. Pulamos e gritamos perto do rádio, mas era uma alegria passageira. Logo voltamos a ficar amargurados. Até as crianças sentiam alguma culpa porque sempre diziam que era melhor não ter filhos num país como aquele. Isso durou ainda uns dois anos, até que Jango foi deposto.
Não sabíamos o que era deposto mas, a julgar pelas comemorações, ao contrário de renúncia, devia ser coisa boa. Naquele primeiro de abril todos voltaram a ficar animados como no tempo da bola e da vassourinha. Só que as ferramentas eram outras.
Falavam de metralhadoras, tanques e gás lacrimogêneo. Falavam de novo em moralização, caça aos comunistas e salvação dos brasileiros. E fomos salvos por mais de duas décadas. Pelo menos aqueles que se comportaram bem e mereceram.
Passados todos esses anos, lembro do rádio com saudade e nostalgia. Mas música de edição extraordinária ainda me acelera o coração. Latino-americanos sabemos que os salvadores estão sempre à espreita. E sabemos o que é espreitar, mas ainda nos confundimos muito com o significado de salvação.
Nem o rádio entendíamos bem o que era, nem o que dizia. Gostávamos das músicas, mas as palavras eram difíceis e entrecortadas por ruídos e chiados que obrigavam os adultos a ficarem de pé junto à cristaleira. Olhando para cima, eu tentava decifrar as caras, os gestos e os comentários daquela gente.
E as caras ficavam muito preocupadas, principalmente depois do toque que introduzia a voz grave do locutor: “Aqui fala o seu Repórter Esso em edição extraordinária...”. Naquele vinte e cinco de agosto a bomba era a renúncia de Jânio Quadros. Renúncia eu não sabia o que era, mas Jânio Quadros eu já ouvira muitas vezes.
A música da vassourinha durante a campanha não me deixava esquecer. Antes a cara dos meus adultos ficava boa quando se falava nele. Era a esperança, diziam, depois que Vargas foi sacrificado naquele outro agosto em que eu não era nascido. Ia moralizar a casa da mãe Joana em que se tinha transformado o país. Moralizar devia ser arrumar porque, segundo eles, o país virou uma bagunça.
Mas agora já não havia elogios ao homem da vassoura. Ele traíra os eleitores dando medalhas a terroristas e desafiando aliados e benfeitores que nos mandavam latas de trigo com letras da Aliança Para o Progresso. De qualquer forma, renunciou. E renunciar não parecia nada bom.
- Ele já deve estar preso – disseram. E eu pensei “se ele foi preso, o que fizeram com a vassoura?”. Nunca entendi por que o Presidente precisava de uma vassoura. Uma vez me responderam com alguma impaciência, como se todo mundo já soubesse: - é pra varrer a corrupção. Claro que eu não sabia o que era corrupção, mas imaginei que eram papéis e documentos ruins que, amassados ou rasgados, eram varridos pelo Presidente.
Depois da tal de renúncia a situação deve ter piorado porque ninguém ficava mais alegre com o “reportelesso”. Todos falavam de ameaça comunista, de greves, de racionamento – esse eu sabia que era ruim porque faltava açúcar, carne e feijão. Diziam que a coisa ia de mal a pior e que o Brasil não tinha mais jeito.
O rádio falou de parlamentarismo e eu não sei nas outras casas mas na minha ficaram bravos de novo. Isso era coisa de estrangeiro. Em país de macho o presidente manda, não faz figuração. Mas, também, esse frouxo do Jango, é melhor que não mande nada mesmo.
Nem tudo era cara feia e o Brasil foi campeão no Chile com Pelé, Garrincha e outros nomes que aprendemos na alegria dos adultos. Pulamos e gritamos perto do rádio, mas era uma alegria passageira. Logo voltamos a ficar amargurados. Até as crianças sentiam alguma culpa porque sempre diziam que era melhor não ter filhos num país como aquele. Isso durou ainda uns dois anos, até que Jango foi deposto.
Não sabíamos o que era deposto mas, a julgar pelas comemorações, ao contrário de renúncia, devia ser coisa boa. Naquele primeiro de abril todos voltaram a ficar animados como no tempo da bola e da vassourinha. Só que as ferramentas eram outras.
Falavam de metralhadoras, tanques e gás lacrimogêneo. Falavam de novo em moralização, caça aos comunistas e salvação dos brasileiros. E fomos salvos por mais de duas décadas. Pelo menos aqueles que se comportaram bem e mereceram.
Passados todos esses anos, lembro do rádio com saudade e nostalgia. Mas música de edição extraordinária ainda me acelera o coração. Latino-americanos sabemos que os salvadores estão sempre à espreita. E sabemos o que é espreitar, mas ainda nos confundimos muito com o significado de salvação.
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Bjs.