RECICLAGEM >> Carla Dias >>

Ah, essa não é uma crônica biodegradável. Também não tem como objetivo discutir a saída das sacolinhas de plástico do cenário dos supermercados brasileiros. Desculpem-me, minha intenção não foi criar um título-manchete, aproveitando-me da moda ecologicamente correta, que espero, dia desses, deixe de ser moda e se transforme em realidade por escolhas responsáveis... Nossas.

Porém, é inegável que esta crônica tem a ver com reciclagem. Pode até não ser das embalagens dos alimentos, das latinhas de refrigerante, das garrafas PET, dos mil e um embrulhos que aquele produto lindo que você comprou veste, mas tem a ver com reciclagem.

Numa conversa com um amigo, fui fisgada pela noção de que nada é o que parece. Tá, eu sei que isso já é conversa antiga, verdade escancarada, certeza definida. Porém, a pegadinha é que, para certos assuntos, não basta sabermos a respeito dele, da sua veracidade. É preciso mergulhar na compreensão e aceitação desse conhecimento.

O meu mergulho foi um pouco mais além: eu não sou o que pareço, até para mim mesma, assim como nada é o que parece. Eu não tenho a idade que tenho, e não por me envergonhar dos meus quase quarenta e dois, mas por carregar nas costas o peso de mais tempo do que aquele em que frequento esse mundo.

Tudo o que estava em ordem, de acordo com a minha percepção sobre mim mesma, agora parece deslizar em espiral.

Compreendendo que eu não sou o que pareço, abri mão da minha atual identidade. E no lugar de me tornar espiã - como me sugeriu, e mais de uma vez, um dos meus sobrinhos -, escolhi me aproximar da clareza, ao invés de me esgueirar por esconderijos. A verdade sobre mim é que, neste momento, parei de fazer sentido. Coloquei-me em espera, enquanto penso sobre como conduzirei a mim ao encontro de quem sou.

Neste momento, você deve estar pensando o que diabo o levou a ler uma crônica sobre a crise existencial alheia. Mas acontece que também você não é o que parece. As suas escolhas nem sempre são baseadas no que você julga ser o correto. Às vezes, elas acontecem por conveniência, por diplomacia, pelo dever de cumprir uma tarefa, por pura preguiça de defender um ponto de vista. Porém, não há escolha mais importante do que aquela que fazemos por acreditarmos nela. É esse tipo de escolha que constrói uma pessoa que não parece, mas sim é.

Um dia, eu estava em uma fila do supermercado, e uma senhora, que estava em minha frente, esvaziou o carrinho e o manteve onde estava. Pensei que fosse apenas o de praxe, porque alguns gostam de manter essa distância para digitarem as senhas dos seus cartões sem o receio de que o seguinte da fila possa assistir ao feito. Mas então, ela pagou a conta e saiu, deixando o carrinho onde estava, bem na minha frente. Ainda me lançou um olhar desaforado, antes de ir embora.

Neste dia, eu compreendi que não queria ser essa pessoa que não se ocupa da educação e respeito pelo outro, tampouco por mim mesma. Percebi que a vida requer uma atenção maior do que eu andava dando a ela, ocupada demais que andava com mirabolantes sonhos a serem realizados. Gentileza tem de ser natural, mas assim como tudo, e ainda que sejamos pessoas conscientes e respeitosas, tendemos a esquecê-la na pressa em fazer a vida acontecer.

Como pessoa que não é o que parece, e busca por quem é, sem apenas parecer, posso garantir que a forma como se olha o mundo muda, depois da aceitação de tal ciência. Fica-se mais gentil, eu garanto, e não apenas com o outro, mas também consigo mesmo, e nos detalhes: já não nos enerva o fato (e fardo) de não sermos iguais aos que são considerados vencedores, porque passamos a reconhecer as vitórias cotidianas que conquistamos, e o valor de cada uma delas. Passamos a perceber importâncias que, por serem sutis, eram engolidas por desejos requintados. Nossos corpos passam a nos pertencer, desgarrados que andavam ao se espelharem em frequentadores de capas de revistas, perambulantes das salas de estar do photoshop. Ao invés de brigarmos com desconhecidos pelas vagas para carro, na rua ou no shopping, pelo primeiro lugar na atenção de indivíduos que jamais desejaram dispensá-la conosco, por tudo o que não necessitamos, damos um passo adiante e simplesmente aceitamos o que a vida nos oferece, e lutamos, justamente, por aquilo que realmente nos importa.

Como eu disse, não se trata de uma crônica ecológica, mas sim sobre a reciclagem da qual o ser humano necessita. Ou talvez tenha sim um quê ecológico nisso tudo, porque o cuidado com a natureza é uma consequência dessa humanidade reciclada. Depois, ficará mais fácil lidar com as sacolinhas do supermercado, com o lixo reciclável, com o descarte de eletrodomésticos, com as manchas no oceano. Deixando de ser regra o pertencemos ao que parece, mas não é, e exercitando o direito de sermos, talvez possamos melhorar esse cenário. Talvez possamos nos tornar um bicho melhor para o planeta e também para os outros bichos da nossa laia.

Reciclar-se pode ser bom e revelador.


Comentários

Carla, depois do seu texto não dá para algo dentro da gente não mudar. No mínimo, um botãozinho que nos faz pensar foi acionado.
Muito bom, como sempre!
Bjs
Carla Dias disse…
Marisa... Que esse botãozinho acionado a leve às melhores e mais reveladoras jornadas. Obrigada por me ler, por me permitir dizer e ser compreendida. Beijos!
albir disse…
Verdade, Carla. Publiquei uma crônica que relaciona grosseria com poluição (Bicudos, 16/01/12). Afinal os dois estragam o ambiente.
Zoraya disse…
Carla, nenhuma crônica sua é degradável. Essa busca de nós mesmos, em lutar para descobrir quem somos e nao o que parecemos ou acreditamos ser é o verdadeiro Bom Combate. Mais uma crônica sua pra guardar.
Muito boa sua reflexão...vou usar essa crônica em minhas aulas com adolescentes. Obrigada.
Cibele.
Carla Dias disse…
Cibele... Que honra! Um grande abraço.

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