AMOR NOVO
PRECISA DE ARES NOVOS
>> Maria Rachel Oliveira

Quando terminam os amores, eles deixam rastros. Certas lembranças que não se pode guardar sob pena de a vida não andar pra frente. Fotos, bilhetes, pequenas coisinhas, okey, você grava tudo num cd ou põe numa caixinha cor-de-lavanda e embatuca em algum canto que não use na sua casa, ou na casa de sua mãe e deixa lá, finge por algum tempo que simplesmente não existem. Trata-se do tipo de lembrança que pode perdurar. Nem incomoda. Um dia, muito tempo depois que os sentimentos tiverem virado uma vaga lembrança, você lembra que esses restos existem e vai lá, numa onda esquisita de nostalgia, cata, ri e percebe que não lembra de tudo, mesmo que em um ou outro amor tenha ultrapassado, sei lá, 5 anos.

Em alguns casos esqueceu até os sobrenomes, lembra pedaços, um aqui, outro acolá – e geralmente só os bons, mas às vezes o tempo futuro prega peças revelando umas surpresas; ora divertidas, ora amargas, ora só surpresas mesmo. Reconhece a criatura x, a criatura y, ri daquele poema boboca que quando você ganhou não deu, talvez, o valor que merecia. Olha aquela foto e pensa: 'meu Deus, eu fui apaixonada por isso? Como?'. Ou encontra a foto daquele seu amigo e se surpreende ao lembrar que um dia já foi namorada dele. Mas lembranças escondidas estão destinadas a não se tornar nada além de um pedaço do seu passado. Foram devidamente tiradas da sua frente antes de se tornarem objetos de adoração, propulsoras de uma psicose, pseudo-relíquias, peças de vodoo ou sabe-se lá o quê.

Eu destruo lembranças sem dó. Só fotos e bilhetes sobrevivem, e, eventualmente algo que tenha maior utilidade, como um par de sapatos bonito que fulano te deu, o Bulgari que o cicrano esqueceu na sua casa e nunca reclamou – e como você adora o cheiro se fingiu de morta. Coisas que têm mais valor emocional que utilitário, e não cabem na caixa, merecem a fogueira, a lixeira do prédio, a imensidão do mar, o cemitério, o rio, ou qualquer outro lugar longe de onde você mora. A cerimônia de livramento deve ter direito a rituais de exorcismo. Eu mesma já celebrei umas três ou quatro nesta vida. Já queimei uns 2 ursinhos de pelúcia, 1 abajur, alguns cartões grandes demais para serem escamoteados, uma meia-dúzia de porta-retratos, 2 ou 3 travesseiros, um sem fim de CDs e um forro de banco pra bicicleta de spinning entre outras coisas que não estou me lembrando agora. A aliança do meu primeiro casamento eu mandei derreter para virar crédito pra coisa outra. De um famigerado par de brincos só guardei os brilhantes e mandei derreter o ouro também, e o vil metal acabou se transformando num anel lindão, que, aliás, raramente me lembro que é filhote daqueles brincos. Ah, também me desfiz de um anel de compromisso jogando no primeiro rio que me apareceu numa ocasião.

Relicários de coisa morta que não faz milagre são coisas absolutamente sem sentido. Portanto, queime, sempre que possível – porque o fogo transmuta – e Nero, lá do inferno, ergue um brinde a seus seguidores. Se não for coisa inflamável, sei lá, atire pra bem longe – nos casos pertinentes você ainda pode mandar aquela bijou pra Iemanjá, umas roupas e cobertores pros pobres de Santo Antônio e ver se eles não topam mandar uma coisa melhor da próxima vez. Se, exceção, a coisa terminou bem e você ficou com zero de mágoa e quer a lembrança, não incendeie – mas mesmo assim deixe hibernando, por um tempo, na caixinha da lavanda. É melhor, vai por mim.

Amor novo precisa de ares novos, de terra fértil – e de espaço nas gavetas.

Comentários

Laísa Duarte disse…
MOÇA,CURTI MUITO A CRÔNICA.
AMOR NOVO VIDA NOVA,ISSO AI!
LI ATÉ O FIM E QUERENDO MAIS!HEHE
PARABÉNS!
Beleza de crônica, Raquel. Quando estivermos face a face, me peça para lhe contar sobre uma de minhas tentativas de "queimar" o passado.
Zoraya disse…
Rachel, prepara umas aulas de desprendimento que esses seus conselhos sao bons demais! Vamos trocar receitas de transmutação, mas vamos deixar o coitado do Nero em paz, ele tá só levando a fama, rs. Beijos, adorei (e vou ler o vamos falar sobre o Kevin)

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