DIÁRIO DO NASCIMENTO >> Whisner Fraga


O parto estava marcado para seis de setembro. Ativistas e parentes condenaram, mas ninguém tinha uma opinião muito fundamentada a respeito do assunto e, além do mais, Helena ainda não havia se virado, para que pudesse escapar do útero, mundo afora. Depois, não sejamos hipócritas, a comodidade de uma cesariana nos tentava de uma maneira praticamente irresistível. Como eu sei que essas coisas quem decide é a mulher, assumi meu papel de bom ouvinte. Quando requisitado, repetia o mantra: você está certa, você tem meu apoio, é melhor assim etc.. Deu tão certo que a gravidez não atravessou muitas turbulências.

No dia cinco de setembro, bebi algumas latinhas de cerveja, pois estava razoavelmente ansioso e precisava relaxar. É eu sei, usar o álcool para relaxar, tsc, tsc, tsc. Eu uso, fazer o quê? Mas a minha ansiedade, eu acho que era retroativa, acumulada. As pessoas tinham dado tanto palpite a respeito de tudo, que eu me sentia um pouco zonzo. No carro, uma toalha tinha um lugar fixo no banco traseiro, porque alguém havia alertado que a bolsa poderia estourar a qualquer momento e seria água para todo lado. Nossa obrigação era evitar essa vergonha. O celular, um objeto que eu ignorava solenemente, passou a ter as teclas e o visor apalpados paranoicamente, pois Ana poderia me telefonar a qualquer momento dizendo que Helena estava prestes a chegar à luz. A anestesia que Ana receberia no dia seguinte era motivo de pesadelos recorrentes: peridural ou raquidiana? A medida do crânio, no último ultrassom, estava correta? Ela tinha mesmo os dois bracinhos? Todos os dedos estavam lá, tem certeza? O coração batia, você viu? O pulmão já estava formado?

Devo confessar que dormi muito bem, obrigado. A cesariana estava marcada para as dez e meia da manhã, mas o médico pediu que chegássemos às seis. Ok, chegamos, tudo é festa mesmo. Nove horas e já estávamos instalados no quarto, Ana com o camisolão verde, deitada numa cama, aguardando. O parto seria a qualquer momento. Dez horas e até que nos saíamos bem, tentando conter a ansiedade. Onze horas e eu pensei que já poderiam ter dado alguma notícia, enviado alguma enfermeira, sei lá. Onze e meia e finalmente aparece um funcionário do hospital. Subimos até a sala de cirurgia, me alertam que irão preparar Ana, que eu espere. Meio-dia e meia me chamam para três minutos de uma cena que, honestamente, a despeito do que todos afirmavam, não mudou drasticamente a minha visão a respeito das coisas. De repente, no meio do sangue e de outros líquidos, surge Helena. Ela é levantada pelos pés, chora, o anestesiologista faz uma piadinha de praxe, o pediatra aproveita a deixa e solta a sua também e pronto: sou pai.

Eu sabia que a coisa dali para frente seria cansativa: devia esperar Ana sair da anestesia, devia esperar darem o primeiro banho em Helena - a portas fechadas, evidentemente. Acredito que o verdadeiro paciente devia ser eu naquele instante. Fiz o que era esperado de mim, então: aguardei. Enquanto mastigava uma brachola mal cozida, veio-me uma inspiração. Eu devia sair dali naquele momento, ir o mais rápido possível a uma papelaria e comprar um caderno e uma caneta. Escreveria o diário de Helena, o diário do nascimento. Seria esse o meu presente a ela, o meu jeito de dizer à minha filha que eu não ficaria indiferente àquele momento. Não, não era somente isso, me perdoem. Quem eu quero enganar? Eu simplesmente ponderei que, daqui a quinze anos, Helena possa querer ter uma ideia do que foi de fato o seu nascimento, o que aconteceu, com todos os detalhes daquele seis de setembro. E raciocinei que se deixasse para escrever depois, se deixasse para relatar o acontecido dali a um mês ou a um ano, algo poderia se perder. Na verdade, os detalhes seriam substituídos por variantes, ao longo do tempo. O geral, o grosso da história ficaria. Como, por exemplo, eu contar que Helena dormiu conosco, em nosso quarto, em seu primeiro dia de vida. Isso não vai mudar jamais, o fato será sempre esse e assim seria narrado, mesmo se eu não tivesse registrado no diário. Mas será que eu me lembraria que dormi em um sofá duro e que, a certa altura da noite quase morri de susto porque uma enfermeira entrou no quarto sem pedir permissão? Ou então que requisitei que um técnico fosse ao nosso quarto configurar a rede wireless do notebook e que ninguém apareceu e eu não tinha como enviar a foto da pequerrucha para ninguém? Na dúvida, decidi escrever.

Sei que daqui a quinze anos esse diário vai ser um presente bobo para Helena. Haverá um tênis ou algum aparelho eletrônico que ela vai desejar muito mais. Daí eu concluo que fiz o relato do parto e dos primeiros dias de Helena para mim e para Ana, para que não nos esquecêssemos daquele dia, para que digeríssemos a experiência da paternidade e da maternidade. Mesmo assim, espero que minha filha reconheça naquelas palavras a grandiosidade da vida e do amor.

Comentários

Certamente o fará. Filha de um homem tão sensível, ela saberá reconhecer o amor nas palavras e no olhar de pais tão surpreendidos com seu nascimento. Saúde para Helena e vida longa para vc e Ana.
Carla Dias disse…
Helena vai apreciar sim o diário, e tanto quanto você e Ana, talvez até mais. E ainda vai poder contar aos amiguinhos da escolha, "minha vida é um livro sendo escrito desde sempre". Isso é mais bacana que um tênis ou um aparelho eletrônico : )
É de muito grande sensibilidade o seu acto. E o reconheço como caso particular, sério, no duro. Imagine que em uma sociedade turbulenta como a nossa: onde os valores estão a se alterar; onde a configuração do modelo familiar vai se alterando de uma maneira a não podemos definir se a família caminha para deixar de existir ou se está apenas a se modificar... Nosso contemporâneo é uma confusão dos diabos! Vá à um destes psicólogos por aí e eles te pedem pra desenhar a sua família: que família desenhamos hoje? Que família sua filha desenhará...
Kika disse…
Que texto lindo.
Não sei a Helena, mas, nós, leitores, adoramos que compartilhaste conosco um pouco do que foi o diário do nascimento.
Tenho certeza que Helena vai se deliciar com o diário. Ser esperada, amada e festejada é algo que, apesar da tecnologia e das modernidades, será sempre o mais valioso presente!
whisner disse…
Obrigado a vocês pela leitura! Torço para que Helena venha a se encantar mais com um livro do que com um celular. Mas só o tempo dirá. Abraços!
Não pare de escrever esse diário, Whisner. :)

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