CRÔNICA DO LANÇAMENTO >> Whisner Fraga

Conheço bem aquela região de Pinheiros, pois visitava com frequência o Cemitério São Paulo, na Henrique Schaumann. Gostava de passear pelas alamedas, observando a rispidez intransigente das esculturas, os anjos manchados de descaso e abatimento e aqueles tapetes de lodo contaminando o ar com seu cheiro de enxofre e tristeza. Conheço bem aquela região de Pinheiros e podia afirmar que choveria em breve, porque as nuvens se amontoavam numa cumplicidade de águas.

Decidi que seria melhor dar uma parada na feirinha da Benedito Calixto e ver o que o tempo me reservaria. A praça estava lotada àquela hora e era bom trombar com aqueles punks chiques, caçadores de antiguidades. Em frente, foram abertas algumas galerias, o que deixou o ambiente um pouco mais requintado, de modo geral. Logo o chuvisco apertou e tive de me refugiar num desses corredores, para que não me molhasse. Na entrada, vi um porta-joias e achei que se levasse para Ana, ela teria como organizar suas bijuterias. Mas a banca estava vazia e a dona provavelmente escondida em algum outro beco, sem guarda-chuva, impossibilitada de retornar antes que o tempo limpasse o céu. Como não podia comprar a lembrança, decidi me sentar para ver a enxurrada arrastando lixo sarjeta afora.

Ainda tinha uns bons vinte minutos até o lançamento, marcado para o final da tarde. Mas a chuva parecia à vontade naquele dia e não dava sinais de trégua. O pior é que eu estava a quinhentos, talvez seiscentos metros do bar, onde alguns cronistas autografariam “Acaba não, mundo”. Prometera a alguns que iria, restava-me cumprir a promessa. Meia hora depois e comecei a me inquietar. Uma hora mais tarde e já podia caminhar pelas ruas sem me molhar demais. Então segui para o Canto Madalena.

O boteco estava lotado – muita gente para o lançamento, muita gente para curtir uma happy hour. Não conhecia quase nenhum daqueles cronistas. Comecei a colaborar com o site Crônica do Dia no final dos anos 1990, assim que a página foi idealizada. Continuei escrevendo durante três ou quatro anos e depois parei, pois inúmeros contratempos estavam me impedindo de cumprir o compromisso de publicar semanalmente meus textos. Recolhi autógrafos de quase todos, assinei alguns livros e nesse meio tempo me perguntaram várias vezes se eu ainda escrevia. De certa maneira me senti um pouco incomodado com a pergunta, pois sempre me imagino mais conhecido do que realmente sou e como a antologia Geração zero zero foi lançada há pouco, pensava que meu nome ainda estava na roda. Ademais, eu havia feito minha tarefa de casa: tinha lido sobre quase todos, procurara crônicas daquelas pessoas, pois achava que seria uma boa maneira de puxar conversa, caso surgisse a oportunidade.

Mas as oportunidades não surgem sem que a gente dê uma forcinha, de modo que preferi me refugiar em algumas canecas de chope. A Carla estava me salvando, colocamos o assunto em dia, mas ela também era requisitada, muitos livros a assinar. A Kika também foi muito bacana e assim por diante. A certa altura, o Osvaldo chega. Eu já me sentia à vontade naquele confortável torpor alcoólico, ouvindo a conversa de dois velhinhos, que versava sobre um preconceito mal formulado acerca do homossexualismo em voga nos dias correntes e sobre uma ou outra escapadela sexual lá pelos anos 1960. De maneira que estava tudo muito divertido. De repente chega o Osvaldo e a gente desanda a conversar e eu me esqueço da festa, do lançamento, de tudo.

Dali a pouco meu editor me liga dizendo que a esposa passaria no boteco mais tarde para me entregar uns livros. Eu, que pensava em sair mais cedo, de fininho, acabei sendo “forçado” a ficar mais. Se era pra ficar, que pelo menos o garçom trouxesse mais uma caneca. E assim foi. Chris chega, pede uma também e ficamos os três a falar de nossas experiências com crianças. A minha é bem pouca, pois sou pai há apenas um mês, mas já arriscava meus palpites. Então a noite estava agradável, mas no dia seguinte eu viajaria cedo e precisava ir embora logo. Meu corpo de quarenta anos já não aguenta mais os baques de uma noitada. Antes de sair, avistei o Eduardo, o único que restara da turma. Bom, era com ele mesmo que queria falar. Perguntei se ainda tinha espaço para mim lá no site. Carta branca, saí feliz em busca da minha carona. E foi assim que cheguei aqui.

Comentários

Whisner,
Que bom que chegou até aqui!
Seja bem-vindo!
Whisner, bem-revindo ao Crônica do Dia. :)
Unknown disse…
Whisner, bem-vindo de volta. Já começou bem. Adorei seu ponto de vista daquela tarde mágica.
Bem vindo de volta, moço. Eu sempre gostei de te ler...
whisner disse…
Obrigado pela acolhida! É um prazer ler todos vocês e uma honra fazer parte do time.
Anônimo disse…
Que boa supresa! Adorei a cronica! Bj. Kika
Carla Dias disse…
Sei que sou mega suspeita, porque sou sua fã assumida, panfleto mesmo sobre os seus livros e há muitos anos... Opa! Desde que você convidou para contribuir com o Crônica do Dia, e aqui permaneci. Enfim, é bom tê-lo de volta, sempre bom ler os seus textos.
muita satisfação em ler estas crônicas, tento encaixar em meus textos!!!

Quanto vale sua riqueza

Um homem muito rico estava refletindo em sua vida alguns meses depois de ter perdido sua esposa, sua filha e seu filho, o caçulinha da família em um acidente de automóvel que deixou marcar inextinguível em sua lembrança.
Sua vida havia perdido todo o sentido, pois já não restavam entes para consolá-lo, nem pai, mãe ou irmãos, sua história era marcada com muitas perdas.
Homem forte e de fé inabalável, decidiu se auto flagelar, viver dali em diante uma vida de privações. Escolheu algumas de suas piores roupas e calçados, pois estava propenso a doar tudo o que lhe proporcionava elegância, conforto e bem-estar.
De agora para frente viveria como mendigo, estava deixando de lado, casas carros, clubes, todo tipo de boemia e sofisticação que o dinheiro pode comprar.
O tempo passou o forte calor durante o dia e às vezes chuva e frio e castigou já com roupas surradas, cabelo e barba desproporcional, juntou tudo que o fazia rico, eram ações, escrituras, títulos, jóias, dólares, euros, libras esterlinas, rúpias, ienes, ou seja, valores em várias moedas estrangeiras, enfim tudo que representava seu status colocou em alguns sacos de lixo e saiu de casa arrastando pelas calçadas. As pessoas atravessavam a rua ao se aproximar dele, moradores de rua o fazia correr, achando que era uma ameaça ao seu território. Depois de tanto ser xingado, expulso e apanhado nas ruas, ele encontra uma capela já ao anoitecer, a pequena igreja estava cheia, pois uma celebração estava acontecendo ali, ele parou começou a ouvir as palavras do pregador, ele falava de solidariedade, caridade e partilha. Aquelas palavras o comeu, ele então resolveu entrar e, sem interromper o orador se dirigia ao altar com os vários sacos de lixo que trazia consigo.
Quando estava na metade do caminho, os fiéis o agarraram, não deixando se aproximar do altar, ele tentava explicar que só queria deixar na igreja toda sua riqueza, queria doar todos os seus bens para os pobres. Nesse instante toda a assembléia zombou dele e imediatamente o colocaram para fora em meio a xingos e jogando sobre ele suas coisas.
O pobre homem escorraçado na calçada, quando foi jogado o último saco grande foi surpresa de todos, o saco se abriu mostrando seu conteúdo. O mendigo juntou tudo novamente enquanto algumas pessoas o ajudavam a levantar, mas era tarde demais, ele se levantou sem dar uma palavra e continuou sua peregrinação para encontrar verdadeiros merecedoras do seu tesouro. Parou sob uma passarela que atravessava a movimentada avenida, algumas mulheres que se humilhavam para os pedestres da passarela e com bebês pendurado em seus seios, o homem viu nessas mulheres sua esposa e seus filhos, estava resolvido, daquele dia em diante sua mansão e bens iria dar conforto a quem sofria humilhações nas ruas e não tinha o mínimo para viver dignamente, fez daquela gente sofrida seus herdeiros e desapareceu, sem nunca mais alguém saber do seu paradeiro.

Autor: j. Venuto
www.venutoimpactodp.blogspot.com

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