A CURTA LINHA DA VIDA >> Leonardo Marona

O negócio estava começando a murchar, como de costume. Estava no quarto contando os minutos e jogando as sobras fora, pensando se conseguiria algum dia ser um sujeito prestável, quando ouvi umas pedrinhas batendo no vidro da janela.

Não importava muito que quiséssemos ser pessoas prestáveis. Não importava o que eu quisesse ser, um rapaz solidário, um atirador de elite, um entregador de gás. Outras coisas me puxavam pelo braço de um lado para o outro sem que ao menos eu conseguisse identificar que coisas eram essas. Era como se tivessem me soltado com uma bóia no meio de um aquário de piranhas e depois tivessem gritado: Vá! Nade! Salve sua vida! Era simplesmente inútil tentar mudar isso. Não importava um milímetro que eu quisesse um futuro de vez em quando. Que eu desejasse usar o meu tempo e sentir alguma progressão. Nem que algum bigodudo super concentrado em si mesmo falasse da transvaloração de todos os valores enquanto eu tomasse o meu café mal coado. Seria melhor esquecer os valores ou dar novos valores às coisas ou sei lá o que tiraria uma corda de um pescoço falido. E, afinal, pra que tudo isso se quando olhamos uma criança sem os braços e as pernas pedindo qualquer sobra de vida na calçada nos sentimos uns pilantras sortudos de merda de qualquer forma? Ser um fodido pode ser melhor que ter as coisas na frente do nariz sempre que se precisa delas. Além de não esperarem nada de você, o que te dá um certo tempo até ser percebido e julgado como o resto, você ainda consegue fazer com que outras pessoas bem resolvidas pisquem pros lados e duvidem da sua própria capacidade, ou se estão vivendo de fato. Não sei se é a melhor coisa do mundo, mas quem nasce na lama aprende mais rápido a nadar. Isso é um fato. E eu precisava sumir por uns tempos da minha frente, antes que enlouquecesse ou arrancasse a cabeça de alguém.

As pedrinhas na janela, portanto. A comunicação interna do prédio estava cortada. Um porteiro pediu demissão e o outro morreu assassinado pelo morador do 401, que continuava em casa botando fogo nos seus papéis e conversando com um sujeito invisível chamado Nazaré, eu acho. O síndico vivia enterrando gente por aí, sempre com flores debaixo do braço e charutos mofados tamborilando por entre os beiços; e jamais dava um alô para o funcionamento do prédio. Ele tinha uma mulher que odiava e que o odiava. Acho que a situação do rapaz do 506 é parecida. Um dia topei com ele no elevador. Seus planos eram se mudar de vez para o elevador. Ele carregava uma pequena valise e tinha dois sacos de pipoca doce, daquelas com saco rosa. O morador do 1204 também tinha problemas com a mulher, algo a ver com um pau que não subia por nada no mundo. Tentaram até animais exóticos e nada. Pelo menos tinha uma piscininha e o terraço só pra ele. Já eu, praticamente dormia em cima do teto de um ônibus pestilento. Apartamento 101, sem cortinas, a janela do meu banheiro dava dentro da cozinha do boteco em frente. Podia pedir uma carne assada de dois mil anos atrás, com um garfo enferrujado fincado nela, enquanto enxugasse o saco ou passasse polvilho na virilha. E podia ouvir o papo aberto dos caras de dentro do bar; algo parecido com a vida não presta, não agüento mais, acho que vou matar alguém, aquela puta, e desce mais uma.

Eu jamais atendia às pedrinhas na janela imediatamente. Esperava até cinco rajadas de pedrinhas. Se passasse da quinta rajada, era um cobrador e eu não teria nada a dizer pra ele, portanto, me enfiava debaixo do lençol e continuava com meus minutos jogados no lixo, quando muito com uma cerveja de trigo. Parando na quinta rajada, era o carteiro com alguma surpresa. Ele me odiava porque eu sempre mandava um beijinho antes de ele chispar fora. Eu tinha então que levantar correndo tropeçando nas calças e correr até a janela para gritar que ele não fosse embora com as minhas surpresas. Um cotidiano eletrizante.

Peguei o sujeito no grito. A janela emperrada quase põe tudo e perder.

- Oi! Aqui! O que tem pra mim? Algum presente?

Como eu disse, ele me odiava. Mas não era ele dessa vez. Era um sujeito todo de preto, com dois jatos verdes florescentes grudados nas costas, como as asas de um anjo de plástico, e uma caixa enorme presa por tiras nos ombros. Ele parecia um embrulho de presente para as bodas do demônio. Virou na minha direção, eu de pé na janela, como se alguma coisa o tivesse espetado na bunda.

- Achei que não tivesse ninguém em casa – ele resmungou, conformado.

- Bom, mas como vê, estou bem aqui... Ei, mas você não é o carteiro, porra! De onde você é? E essa roupa bacana? É pra colher mel de abelha sem ser espetado, ou você é radioativo mesmo?

- Olha aqui, chapa... Vamos cortar as piadinhas, tudo bem?

- Hum... Tá certo. Então vamos abrir o jogo... Você veio cobrar alguma coisa?

- Você não tem cara de quem pagaria.

- Na mosca. Mas que diabos você veio fazer aqui debaixo dessas nuvens horrorosas, então? Ainda não olhou pra cima hoje?

- Brindar a vida... O que acha? Vim aqui brindar pela incrível vida que deus nos deu! Olha aqui... Tenho um embrulho pra você.

- Ei, amigo, é pra isso que te pagam? Pra destratar os destinatários?

- Pelo que me pagam eu deveria estar arrancando as tripas dos destinatários com os dentes.

- Tá certo, então. Eu desço e apanho. Pode deixar na porta. Na porta do bar eu quero dizer... Quer água? Porque só tem água.

- Ei! Você não teria nenhuma fruta? Uma pêra... Estou tentando me regrar. Um cálculo renal de merda veio e me fodeu direitinho. O médico disse que preciso de frutas.

- Faça o seguinte, companheiro: deixe o embrulho na porta, sim? E depois procure um novo emprego ou quem sabe um novo médico, oquei? Só o que faltava. Uma pêra...

Ele engoliu seu ódio e soltou o pardo na porta do bar. Fui até lá e aproveitei pra dar uma checada na caixa de correspondência. A única coisa que tinha caído de algum lugar era um santinho escrito assim: Saudações! Financeiro, amoroso. Se você tem um problema e precisa de ajuda, Mãe Preta resolve. Faça uma consulta geral da sua vida e ganhe o patuá de proteção e sorte. Acesse: dábliu-dábliu-dábliu-ponto-maepreta-ponto-com. Muito Axé! Mãe Preta Iyalorixá (contato-arroba-maepreta-ponto-com).

Puta merda, macumba pelo correio era o que faltava. O desespero toma a forma de serpente e agradece a colaboração. Acesse... Muito axé... Isso é uma foda! Voltei pra dentro do mofo com o meu pardo e rasguei de ponta a ponta o saco. Dentro tinha um convite. Um lançamento de livro. Poesia. Essas coisas. Porco Dio!, diria meu querido Svevo dos Abruzos. Ainda escrevem isso? Até aqui vieram me encontrar! E ainda mandaram um cara de embrulho florescente fazer o trabalho sujo. O coitado nem sabe o quanto ainda vão chupar sua alma, ele nem imagina como vai parecer um bagaço de laranja quando estiver pra pedir a aposentadoria. E que não vai adiantar mais nada estar de saco pro alto, porque o seu saco vai estar tão pestilento e tumoroso que ele vai voltar a ser católico, porque nada mais haverá de concreto que o estimule a continuar por aí respirando. Será que o governo está pagando por isso? Esses poetinhas ficam por aí pulando que nem coelhos no cio. E coelhos estão sempre no cio, não é mesmo? Portanto, Sr. Marona, o senhor está convidado para o lançamento do livro “Estou com o mastro na mão”, a prosa poética do último beatnik dos trópicos, Zenir Constanti, programado para o próximo dia 20, às 22 horas, na Livraria Pretexto. Sinta-se importante, ele lembrou de você! Após autógrafos e fotos, um coquetel com muita música marginal e uma sessão de improviso recitado. E isso e aquilo e tudo o mais para acabar de vez com um dia sossegado elevado à infinita potência. Meu deus, quem escreveu esse negócio? Último beatnik dos trópicos... Achei que ele tinha morrido esperando a lua descolar do céu. Imaginei bem como seria o negócio todo. O sujeito juntaria oitocentos nomes de autores, escultores, manifestos de época, pensadores de aluguel etecétera, e os colocaria numa ordem inusitada, duas ou três palavras por linha, para que as pessoas que lessem pensassem, nossa, ele conhece esse cara! Nossa, Leminski é sua principal influência! E o Leminski viraria as tripas debaixo do matagal, sem ter escolha alguma. Prosa poética marginal... Sei.

Mas tinha também o coquetel on the house. Poderia ser uma boa. Eu tinha o pavoroso hábito de me forçar a situações constrangedoras. O passatempo de um maníaco do bem. Acreditava que isso acelerasse as coisas dentro da cachola. Ou então era tudo o que a faculdade de jornalismo tinha me oferecido durante esse tempo todo. Reportar misérias. Mas tinha o coquetel logo mais, já era o dia 20 e eu tinha sido o último a receber o convite, e afinal eu não tinha mais nada. Puta, mas no outro livro ele escreveu Ginsberg com ge-u-i e agá no final! Bom, a birita vence outra vez. E em casa era aquele negócio: o canal de sexo pay-per-view era um grampo de cabelo metido numa minúscula caixa de plástico com números digitalizados em vermelho que ficavam brilhando e falhando pavorosamente. E eu não passava de um cara viciado em imaginar coisas terríveis que substituíssem outras coisas terríveis e assim por diante. Todos têm doenças ignominiosas sobre as quais não falam nunca. Eu também. Eu as escrevo no papel e o que isso importa, não é mesmo? Nada. O que importa são os lançamentos de poetinhas cheios de intensidade e olhos vesgos em livrarias sombrias e medievais. O que importa são pessoas de cachecol sugando xícaras e taças, te olhando com as sobrancelhas oblíquas lá no alto. O que importa é que você chegue lá e o poetinha te dê um abraço totalmente opaco, sem te dar uma checada sequer com os olhos, cumprimentando outras três pessoas ao mesmo tempo. Os flashes, as poses, os recitais e mãos ao alto! O que importa, afinal? E não, eu não me lembro de quem era o grampo do sexo pay-per-view. Se me lembrasse, pelo menos isso me ajudaria a esquecer de outras coisas piores e traria de volta momentos em que fui realizado e uma linda judia sardenta de cabelos presos os soltou exclusivamente para mim, para o meu contentamento, e que certamente inventamos um amor por algumas horas pelo menos, em algum dia encoberto pela neblina da minha rotina sem rota. Eu passava, portanto, os dias sacando a anatomia feminina e lendo grandes bobagens universais. Bom, anatomia é uma matéria importante. Pena que, no meu caso, venha junto com urros grosseiramente intensificados, com dentes trincados e traços faciais de puta velha. De qualquer forma, era melhor que o jornal da noite. “Morrem 240 pessoas trituradas num culto religioso na Síria. Duas delas tinham bombas caseiras presas na cintura, vestiam camisas com imagens de Maomé usando batom decalcadas na altura do peito e não faziam a barba desde que o Mar Vermelho se dividiu ao meio... E não percam, a seguir... Filipe Dylon, no nosso Papo Reto, fala abertamente da sua carreira, suas relações amorosas com as fãs e admite: Como mesmo!”. Enfim, eu estava me sentindo completamente miserável e seguro de mim mesmo. Dinamite com fogo, é isso que era. Os tempos eram frutíferos, uma fase daquelas, e era como se não houvesse mais nada para amar ou pelo menos trepar em cima. Eu precisava de um banho. Um banho pra sempre.

Cheguei na livraria umas onze e meia da noite e estavam todos lá, nenhum deles a minha espera, é claro. Fui falar com o Zenir, dar os parabéns, cumprir a cartilha do bom servo. Foi aquilo, o de sempre. “Que bom que você veio, cara! Olha, tem champanhe ali, uns quitutes logo atrás daquele balcão. Quer um charuto?... Opa! Com licença... Oi, tudo bem, bom ter vocês aqui... Então, Marona, eu adoraria que você me dissesse o que acha do livro. Só um minutinho... Seu filho da puta, você também está aqui! Oi, então, Marona... Bom, é só um livrinho, como você sabe, nada muito pretensioso”. Ele se mexia pra frente e pra trás com os olhos estalados e passava as mãos pelos cabelos constantemente, olhando sempre pra frente e depois pros lados. Estava em transe. Esses caras nascem assim. “Zenir, qualquer tipo de poesia sempre é pretensiosa”, eu disse a ele. “Vinda de um moleque de 21 anos como você, então, é quase como lamber o próprio saco”. Sr. Constrangimento, muito prazer, pensei em seguida. Ele rolou os olhos pro lado novamente, com cara de coma induzida. “Ooooooi! Vocês também vieram! Que bom que vieram! Olhem bem, comprem este livro aqui que eu preciso pagar meus porres... E OS DE VOCÊS TAMBÉM, NÃO É MESMO?! O que me resta, afinal?... Ehehehe... Champanhe à esquerda. Um garçom está servindo os canapés. Meu deus, eu amo vocês, seus miseráveis de uma figa!”. A festa estava completa e você nunca entenderia o que queriam dizer aqueles poetas. Você não entenderia se eles realmente levavam o que escreviam a sério. Você não entenderia nada do que eles escreveriam e venderiam a vida toda por aí para custear os porres. Levavam alguma coisa a sério? A vida era o que para eles? Uma descoberta fantástica atrás da outra? Quanto isso custava, pelo amor de deus, quanto?! Não dava pra entender nem se eles estavam contentes com a tua presença ali ou se queriam apenas te espremer o quanto pudessem com perguntas cretinas e sutis olhares de desaprovação. Queriam apenas te embebedar ou será que não viam a hora de jogar flores sobre o teu túmulo? Fiquei na dúvida mais uma vez. Talvez fosse pra sempre. Simplesmente meti o bico numa taça de champanhe assim que consegui dar a partida no motor.

O segredo é: movimentos curtos e um meio-sorriso constante. Dessa maneira você leva umas resvaladas aqui e ali, mas sai quase inteiro e pronto pra máquina. “Marona, vem cá!”, o Zenir berrou. “Uma foto pra eu mostrar pros meus pais o filho da puta que você é!”. Me aproximei e fiz a pose. Cara de olho de cu. Fotos. Tinha algum problema entre elas e eu. Eu não conseguia ficar normal, olhar pra máquina, sorrir e deu, vamos almoçar. Eu tinha que me mexer um pouco ou então começava a suar e me desesperar. E o porra do fotógrafo nunca bate na hora em que você posa. Então você posa, dá alguma merda na máquina, todos começam a gritar, a espremer um o estômago do outro, forçam o teu pescoço pra baixo, daí você esquece a pose e abre a boca, coça o nariz, mete a mão na cara de alguém, então o porra bate a foto e estraga tudo. Como um guarda-chuva na mão de uma velhinha dentro de um vendaval. Ele sempre vai esgarçar. As fotos esgarçavam a minha cara e, afinal, não havia nada a perder por ali. Então era botar a língua pra fora, arregalar os olhos, enviesá-los, ou tentar comer a cabeça de alguém. Os flashes não paravam. Parecia que a qualquer momento alguém anunciaria um novo manifesto cultural ou me pediria uma grana emprestada. Sabe, aquela sensação? Portanto deixei minha marca para a posteridade e voltei ao balcão. Enchi dois copos. Ganhei do balconista duas vezes seguidas na velha. Disse a ele que um copo era pra mim e o outro para minha acompanhante. Não estava mentindo. Ela apareceria uma hora.

Comecei a assobiar e passear pelas estantes cheias de verdades para um bom fim da humanidade. Como cuidar dos seus filhos? Como enriquecer sem fazer a barba? Como cultivar macacos em conserva? Aprenda a dizer eu te amo sem gastar nada! Me desloquei então para a estante da literatura estrangeira. How does the world end and where? How to make a princess out of a stupid cow? What happened to Billy Idol and Cyndi Lauper? AH! ONDE ESTÁ A SEÇÃO DOS MORTOS?! PELO AMOR DE DEUS, OS MORTOS!

Sem mortos. De repente foi a vida quem chegou. Ela usava saia, uma linda touca de tricô suavemente colorida em rosa, mechas negras saindo pelos lados das orelhas, e tinha pernas longas e lisas. Estava cumprindo também o seu papel dando uma checada na estante da literatura brasileira. Abria os livros, lia um pouco da orelha, um dedo no queixo, depois trocava. Acho que as pessoas sabem quando estão sendo observadas. Ela já tinha pegado um Chico Buarque, uma escritora de blogs que também é chamada de nova geração da literatura beat. Uma encheção atrás da outra. Um mingau velho lambuzado. Mas ela, apesar de tudo isso, usava uns óculos modernos, armações grossas e pretas, tinha uma pinta na bochecha que não deixava que você tirasse os olhos dela e é claro que eu não consegui me segurar longe dali por muito tempo.

Ficamos, portanto, naquela típica cena up-town-park-jazz. Nos olhando através das prateleiras, taças de champanhe em punho, cenhos esticados, concentrados. Ela continuava revezando orelhas de livros com dedos na boca... Virginia, Clarice, Cristina César, McCullers, Plath, o time todo. Só faltou chorar e enrolar a corda no pescoço. Eu era a raposa do deserto, esperando a carne apodrecer para atacar em seguida. Logicamente não sabia o que dizer e logicamente não iria dizer nada, quando... “Marona! Você está aqui”, veio o Zenir me agarrando de novo pelo ombro. “Escuta, sua peste, quero te apresentar minha querida amiga e admiradora, senhorita Ana Carmines. Ana, este cara não presta. Nunca se esqueça disso”. Ana Carmines... Tinha cara de cigana. Dei a mão ainda mudo... Ela me deu a mão puxando de volta assim que toquei nos seus dedos. Um segundo e meio, nada mais que isso. Então olhou pro Zenir e falou: “Querido, sou sua amiga no máximo, não sua admiradora. Afinal, você já tem seus pais e esse entulho de parasitas ali fora esperando pelo champanhe, não é mesmo? Olha, faça assim, meu amor: pegue um champanhe pra você, traga mais dois pra nós e me deixe aqui com o sujeito que não presta. A festa é sua, afinal. Muita gente te esperando lá no bar. E acho que nós dois nos daremos bem aqui”.

O Zenir era o poeta e eu é que queria chorar e arrebentar os pulsos. Onde enfiar a cabeça numa hora dessas? Ele foi atrás das taças ajeitando os cabelos. Parecia ter cheirado napalm. Eu estava levemente ensolarado por dentro, rezando que durasse.

- Ana... Então você é amiga do Zenir...

- Não sei, cara. Comparando com o quê?

- Bom, tem essa também. Ele tem um monte de amigos.

- Um monte ou nenhum. Escuta... Bom, escuta, Cara Que Não Presta, por que você tava me seguindo? Achou a touca esquisita ou está apaixonado, hein? Me diga.

Zenir chegou de volta com as taças e os cabelos esculhambados. Ding Ding! O gongo soou. Eu estava longe dali. Era bom desse jeito.

- Bem, você deve ter com o que apostar, não é mesmo? – eu disse a ela, sem desviar o olhar da maravilhosa touca de tricô. – E eu sou só uma raposa. Uma raposa à espreita. Você tem carne pra me dar?

- Sou vegetariana... Hit me again.

- Além de vegetariana e louca pelo Zenir, mais alguma coisa?

- Gosto de mãos. Sou uma cigana, exatamente como você estava pensando.

- Exatamente como eu estava pensando... Mas o que faz uma cigana num lançamento de livro, bebendo champanhe e falando com um idiota? Achei que os ciganos dançassem, batessem castanholas e assassinassem as pessoas à noite.

- Você tá por fora, cara. Eu bebo champanhe e salvo a vida dos idiotas que querem me levar pra casa. E você quer me levar, não quer?

- Bom, acho que você não precisa mais de mim por aqui. Já tem as perguntas e as respostas todas. Podemos pular alguma fase?

- Vai depender do teu objetivo final.

- Que você vai me dizer qual é também, aposto...

- Me dá a tua mão de novo. – Eu dei. – Hum... Interessante... Mãos pequenas, delicadas. Aposto que a sua pia da cozinha tá entupida.

- Eu comprei ela assim. Que mais?

- Bom, você quer saber mesmo?

- Você lê mãos também?

- Como assim, também? Que mais você me viu fazendo pra dizer também?

- Além de salvar idiotas de dias terríveis, não sem antes fazê-los tremer um pouco, além de roubar respostas e beber champanhe?

Minha mão ainda estava na dela. Os flashes também continuavam lá fora, puf, puf, puf, e o champanhe estava no fim. Uma certa gritaria era o som ambiente: um passo acerca do inferno. Mas minha mão na dela é o que há. Ela só olhava pra mão. Eu tinha ótimas mãos para serem olhadas. Só podia ser isso. Ou então mais uma louca na minha frente. E eu ali, outro louco, torcendo que ela se apaixonasse de uma vez pelas minhas magníficas mãos pequenas e delicadas.

- Cara, posso ser sincera contigo? – subitamente ela cortou pra cima de mim.

- Por favor, não... Basta segurar a mão que tá tudo bem.

- Sério, cara. Tem alguma coisa muito errada aqui.

E franziu o cenho. Os olhos ainda fincados nas minhas mãos pequenas e delicadas.

- Ah, então você reparou nisso também... É... Tem um monte de coisa errada por aqui. Por exemplo: nós ainda estarmos aqui nessa lengalenga em vez de nos beijando e sendo felizes pra sempre, ou pelo menos por uma noite.

- Essa foi média. Mas sério, a tua mão...

- Que tem ela? Linda?

- Sua linha da vida...

- O quê? Está torta? Pois é, o carteiro veio hoje... As coisas vão melhorar.

- Não, cara... Não sei como te dizer.

- Pois então não diga nada. Vamos ficar calados, olhando um pro outro bem longe daqui, a noite toda, que tal?

- É muito curta!

- Eu sei que é. Mas são só onze e meia.

- Não, cara. A tua linha da vida... É a menor que eu já vi!

- Bom, não podemos ter tudo, não é mesmo?

- Preciso te consultar a sério.

- Eu vou morrer hoje? Por favor, se for, não me diga.

- Em breve... Uma mulher vai te desgraçar.

- Hit me again – I said. Pisquei o olho e fomos.

Sei que eu passei a mão numa garrafa – o Zenir pediu que eu levasse uma garrafa para sua mesa, foi o que disse ao cara do balcão – e então fui me consultar no quarto da cigana, um bangalô do tipo oriental, cheio de sânscritos pelas paredes e velas acessas, um fedor de incenso, um livro de poesias do Tim Burton. Eu estava de boca no champanhe para me proteger daquilo. Não era exatamente o que se pode chamar de um sujeito espirituoso, mas numa sala daquelas conheço muitos que começariam a gaguejar e a derrubar objetos. Ela pegou a minha mão de novo. Algo fácil de se acostumar.

- É o seguinte, cara: você tem que se concentrar. Cruze as pernas e se concentre. Isso é sério. Aqui, na minha frente, por favor.

- Oquei, então. Podemos começar? Ommmmmm...

- Olha, o negócio é sério... É a sua vida e a minha que estão em jogo aqui.

- Me parece razoável.

Ela fechou os olhos por uns segundos. Respirou fundo duas ou três vezes, depois começou. Olhava atentamente para cada traço da mão. Primeiro um traço, depois fechava os olhos de novo, abria logo em seguida um caderninho e anotava, segundo ela, anotações fundamentais pro desenvolvimento da coisa. Eu estive várias vezes prestes a tomar a iniciativa: pular em cima dela ou desatar a rir. Não entendia nada daquilo. Linhas de mãos. E que têm de mais as linhas de uma mão? E se eu caísse de quatro numa fogueira em brasa e perdesse todas as linhas das mãos para sempre? O que significaria isso? Um fim de semana com tudo pago na Ilha de Capri? Uma consulta odontológica gratuita? Pro inferno com as linhas das mãos! Mas ela parecia realmente abismada. As pessoas se prendem a cada coisa...

- Você tem que se afastar das mulheres – ela me disse muito seriamente, depois de um breve silêncio. – Uma delas virá e te arruinará. Diz aqui... Uma mulher misteriosa... A próxima delas... Meu deus! Não pode ser... – E seu rosto ficou transparente. Suas veias agora falavam para eu não entender nada. Estava completamente perturbada. Talvez isso também fizesse parte do negócio.

Na posição em que estávamos, pernas cruzadas, um de frente pro outro, eu podia ver suas pernas escapando para fora das saias. Isso me prendia totalmente naquela posição desconfortável. Todo o papo esotérico estava triturando a minha coluna. Eu estava encurvado pra frente, os calcanhares completamente dormentes, a nuca me matando a punhaladas em cada respiração. E ela continuava com os olhos fixos nas minhas mãos. Acho que eu ficaria vesgo se fizesse o mesmo por mais de trinta segundos. Mas se ela se divertia com isso, quem era eu, afinal?

- Docinho, que tal mudarmos de assunto, hein? – perguntei. – Se importa se eu tirar o casaco?

- Fique quieto! Eu tenho um destino a cumprir. É inevitável...

- Esse é o nosso problema exatamente agora: o destino inevitável está batendo na porta, baby.

E então avancei o sinal. Fui vindo pra cima, com as mãos firmes em suas pernas lisas cheias de vida. Ela estremeceu e fingiu que tentou impedir o negócio de engrenar. Lembrei da mão no mastro do poetinha bem na hora em que ela também se lembrou. Mão no mastro, portanto. Mas ela parecia previamente arrependida de alguma coisa. Se mexia como se estivesse apenas cumprindo um expediente. Eu só pensei nisso durante dois segundos. Depois estava lambendo o sovaco dela. Os pêlos recém raspados faziam creq-creq na minha língua. Uma coisa do outro mundo para um diabo como eu. Daí baixei sua saia e senti a vida se encher de repente. Ana estava morta e se entregando pro diabo. Eu era o diabo. A próxima mulher, a próxima mulher, ela murmurava vez por outra, completamente pálida, robótica. Continuei por cima, depois pelo lado. Eu estava num daqueles... Usei todos os buracos que consegui encontrar. Bom, ela parecia uma boneca sem pescoço. Nunca fui deslumbrante, mas aquilo era a morte. De repente acabei e ela se jogou pro lado sobre a cama, com um dos braços por cima do rosto virado de lado. Se isso era o que ela queria dizer com “uma mulher vai desgraçar a sua vida”, então ela era boa mesmo com as mãos e suas linhas. Porque eu senti que o meu saco ia estourar. Me botei com os cotovelos nos joelhos e tentei descontrair.

- Agora eu posso morrer. Se for agora, estarei bem – disse a ela, me encaixando em seguida na sua bunda maravilhosa de cigana. A boneca sem pescoço não dava um pio. “Eu tenho um destino a cumprir”, “uma mulher desgraçará a sua vida”, “a próxima, a próxima”, fiquei martelando comigo mesmo enquanto deslizava os dedos por suas mechas. Depois levantei, vi que ela estava de olhos fechados, fui até a cozinha, um copo d’água, fiquei um tempo assobiando com uns periquitos irritantes que estavam num poleiro bicando um a nuca do outro, daí voltei pra cama, olhei pela janela, nada de mais quanto à escuridão total lá fora, apaguei a luz e dormi.

No dia seguinte abri os olhos e não havia ninguém do meu lado na cama. Por um momento achei que estivesse em casa, mas o cheiro do incenso já apagado no pires não me deu mais que cinco segundos até a realidade voltar com seus passa-pernas. Ana! Já tinha levantado. Devia estar aprontando o café ou preparando a papelada para assinarmos nossa eterna comunhão espiritual. Que maravilha o negócio com as mãos! Até que funcionou bem. Primeiro uma linha, depois outra linha, e agora estou aqui, esperando meu café quente e está tudo bem, não é mesmo? Ana! Nada na cozinha além dos periquitos insuportáveis cheios de alegria e vibração. Nada na área de serviço além do sol, já sem vontade de trabalhar pela vida na Terra, entrando timidamente pelo basculante. Foi dentro da banheira que fui encontrar Ana Carmines. Eram frascos e mais frascos derrubados pelo chão. Ampolas e tesourinhas de unha espalhadas. Era sangue aquilo, era muito sangue. Saía do nariz, dos pulsos, de baixo da saia também. Não era sangue, era uma pasta de sangue aquilo. Nenhum mísero recado, nenhuma explicação. A próxima, a próxima, lembrei de suas palavras e da sua cara de como se aquilo fosse um destino para dois. O dela estava ali, traçado em sangue pelo chão da banheira, os olhos me olhando sem verem nada. O meu... Bom, o meu estava no mesmo lugar. Em algum lugar longe dali. Ou quem sabe muito perto, na próxima esquina, espatifado num pára-choque de carro. Quem saberia senão Ana-A-Cigana-Carmines? O negócio começava a murchar novamente, como de costume. Eu ali, limpando o sangue e ligando pra polícia. Eu ali, chorando por Ana e por mim mesmo, por todos os miseráveis e todas as crenças sem sentido, implorando para que algum raio me tirasse dali para sempre. Eu ali, enxugando os braços, dobrando as mangas, dando um último assobio para os periquitos, descendo as escadas e coçando as mãos. Malditas mãos! Vocês, suas malditas! Até vocês! Eu poderia arrancar uma de suas linhas com os dentes!

Mas ela ainda estava ali. Minha maldita curta linha da vida ainda estava ali quando eu saí do bangalô e chorei para o sol. E as pessoas saíam das suas casas com cara de café passado e Doriana bem na hora em que eu também saí. Todas com linhas da vida provavelmente bem maiores que a minha. Mas, com um milhão de demônios, qual era a vantagem nisso afinal?



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