PESSIMOTIMISMO ou POEMAS DE ESCÁRNIO >> Leonardo Marona

"um a menos"

por ora os abutres sobrevoam
a lagoa fetal e, muito em breve já munidos
com as devidas garras de enxofre,
eles darão o rasante metálico
e tudo isso será apenas uma história,
um mito, um terá-alguma-vez-isso-acontecido,
mas os amantes estarão esfarelados
em suas carnes antigas, abraçados numa confusão pagã,
a carne nova estará no balcão vermelho dos negócios de feira,
as breves frases delicadas ter-se-ão tornado
bustos pesados de paz em vírus.

a galope o pequeno órgão ratifica
a vaga culpa, estamos nus sob um sol úmido,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
as salas minúsculas e os alquimistas calvos
afunilaram o ambiente com paciência e muito ânimo.
serás processado, triturado e lançado ao acaso
em tua própria tendência succínea, e não será possível
abrir mão deste silêncio como osso tranca-traquéia,
ainda nem uma cabeça, um todo
verminal que no entanto pulsa.

a morte da Grécia está nas ruas
e já não poderei vê-la porque a partir de agora
os olhos forçam para dentro as mágoas,
as covas rasas se alinham ao ventre,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém,
entende-se que a morte do pai reaproxima o par,
pois que assim seja, saberemos renunciar
a qualquer passado por uma nova vida, daremos
as mãos em nosso pior inverno, riremos como clowns
e poderemos até assaltar um banco, costuraremos
as máscaras dos sorrisos heróicos e caminharemos
com menos um pedaço, adiante.

***

"Brasília"

o problema sério de Brasília
são os prédios de pastílhas,
tristes seres que se afagam
nas mil quadras de mil blocos.
Brasília é homem que jamais
pode morrer, mas traz a faca
que sem lâmina nos mata,
nos faz maiores para falar:
Brasília ao longe teu avatar
já não comove nem um grego.
país ao longe, tão brasileiro,
vapor ao vale na imensidão.
sangue escorre, e tenho pena,
Brasília corre com pés no chão.
mas qual o chão, se aqui se morre
pensando em atas de distinção?
o que nos mancha, se temos sorte,
serão as salvas da alforria.
Brasília monstra, por que Brasília,
se onde há homens não há poesia?
não ser Berlim, nem bem Paris,
com a magia dos sem-coturno.
não nos amamos, e sei contudo:
te devo a vida, e o chamariz.
amigo Heine, eu bem entendo
com a frieza dos bigodudos:
além de tudo, há lá mil vias,
línguagens cínicas do violão.
Brasília, a morte nunca foi tua
mas somos todos o teu caixão.

***

"não é felicidade"

você me entrega a felicidade
mas quando ponho as mãos
por trás da nuca feito louco
não sei se é felicidade o que
preciso, ou daquela dureza
de não se saber se pode ser
felicidade um amor tão cheio
de invisíveis parâmetros,
signos sem interpretação,
apenas para ficarmos pasmos,
pensando: é, não é felicidade.

***

"depois de Fassbinder"

o Comitê Invisível tem razão, não haverá mais um New Deal,
as passeatas tornaram-se blocos de carnaval em que se embriagar,
o sentimento social se evaporou em pequenos contratos sociais,
os revoltosos serão festivos e desesperados por sentimento puro,
o sentimento puro será o que se pode sentir sozinho, observado,
a nova insurreição virá da falta de uma linguagem comum,
estamos à beira de um ataque de nervos, fechados em salas
brancas como a morte ou com cheiro de anteontem, sala negras
nos pesadelos que alimentam o suor da nossa perdição sabida,
não haverá a ligação telefônica dos antigos partidários da causa,
com uma semana de enclausuramento cessarão as tremedeiras,
seremos capazes de compreender tudo, com monossilábicos,
fechados pelas sirenes, conseguiremos no máximo imaginar
o desenvolvimento de nossas cáries em rasos canais de amor.

Comentários

Oi, Leonardo! Sempre muito bom te ler!

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