MANHÃ NA RUA OSWALDO CRUZ
>> Leonardo Marona

Arrastava pelo braço um outro senhor um pouco mais senhor e menos digno por isso, ao que me pareceu. Ele era puxado pelo braço de encontro ao vento forte que amassava sua camisa de bolso na altura do peito contra sua ausência de vida em pele. O senhor que puxava era careca. O senhor mais senhor e menos digno, ao que me pareceu, não era careca. Filho da puta, pensei. Filho da puta sortudo de uma figa... Olhei meu reflexo na vidraça da portaria de um prédio um pouco antes do meu. Por que fui raspar a cabeça? Essa cabeça chata de idéias velhas e dramatizações falsas. Pensei em dar minha mão para o senhor mais senhor e menos digno, ao que me pareceu, e ir-me embora com ele até o lugar onde todo mundo tem cabelo e é feliz. Mas o outro senhor, que o arrastava contra o vento, me olhou como se fosse me matar e a toda minha geração. As pessoas precisam se defender delas mesmas o tempo todo. Isso tudo durou um segundo ou dois. Coisa de péssimo escritor. Virei para trás quando passei pelos senhores. O senhor mais senhor e menos digno, ao que me pareceu, estava com uma cueca listrada para fora das calças, a camisa para dentro da cueca. Estava contente com o vento na cara, se sentindo mais jovem, os dentes soltos saltitavam e a goela ia e vinha, tal qual uma bolha de sabão. Saltitava o velhote. O outro o arrastava blasfemando. Eia, velho! Eia! Estou atrasado para a morte, não vê? O velho com a camisa para dentro da cueca, a cueca para fora das calças. Feliz por andar ao sabor do vento, mesmo que arrastado como uma mula.

Entrei no prédio. O porteiro vive rindo. Oi, nenê! Gut, gut, gut, nenê… Ele falava com um bebê de chapéu. A babá era uma daquelas cearenses de pé lascado. Uma boa. Ele ficava lá, contente, gut-gut no bebê e gut-gut nas tetas suculentas do agreste. Eu entrei e só ouvi. O resto eu tive certeza. A porta do elevador estava se fechando e eu tive que correr e enfiar a mão entre a porta e a parede. Porque outra mão puxava a porta para que não me desse tempo de entrar. Meti a mão e entrei. Uma velhota parecida com a Yoko Ono depois de Hiroshima. Uma Dercy Gonçalves oriental, enfim. Usava uns óculos enormes cor de violeta, muito batom encarnado. Não pode ter sido ela quem escolheu aquilo. Deve ser como com o velhote de cueca por fora da camisa.

Bom dia, bom dia. Que calor! Mas e o vento? Nossa! Um, dois, três, quatro, cinco, eu sempre começo a contar números quando não sei mais o que falar. Dez, onze, doze, ela recomeça. Ai, ai, eu não entendo esses porteiros. Estão sempre rindo. Eu digo: É? E ela: É. Quanto menos se tem mais se ri. E eu: Vai ver existe alguma explicação pra isso. Vai ver existe. Daí a velha: Ai, a gente, sabe, a gente é tão cheio de coisa... Ufff... Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, chegamos ao oitavo... Abro a porta pra velhota. Tchau. Até logo. Ela vira pra mim já do lado de fora, tira os óculos cor de violeta e diz: Olha, que bom que uma coisa sempre compensa a outra. É. Até logo. Bum! Porta velha do elevador, porta velha e de grade.

Entro em casa e sento aqui para escrever isso. A água no chuveiro está ligada, o exaustor do fogão a mil. Cheiro de alho. Puta, os nuggets! Merda, Vídeo Show! A água quente a comida quente o dia quente a testa quente a vida fria. Ainda bem que uma coisa compensa a outra.

Comentários

É, Léo, a cada crônica eu tenho mais a impressão de que o Rio ganhou um novo cronista clássico. :)
Unknown disse…
Leonardo! E nesta vida tumultuada que ando aprendendo a viver, o que compensa é saber que com um clique posso matar a saudade de ler essas preciosidades que você tão bem sabe escrever. :)

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