SETE PALMOS MELHOR >> Leonardo Marona

Eram Carlo, Rino e Toupeira no BG Bar, prostrados sobre seus copos, numa daquelas noites entre o céu e o inferno, uma noite comum mas uma cena distinta de todas as outras, porque por mais que fosse sempre a mesma cena, doía de forma diferente a cada vez. Não muito em Toupeira, bem verdade, mas era por isso mesmo que Carlo e Rino, preocupados com a velocidade com que o mundo vinha se tornando um buraco cada vez mais azedo ao mesmo tempo em que tinham que arranjar um jeito de custear os porres por minutos de esquecimento, viviam escorraçando o pobre feliz – é fato que tinha uma tremenda cara de almofada e uns dentes enormes pra fora que o obrigavam a um sorriso constante, mas isso não justifica –, pois era justamente o que invejavam nele: sua felicidade ausente do cotidiano maçante da vida, porque por mais que estivessem cheios das idéias dos outros, de suas leituras e contemplações analíticas, não tinham nada no que encostar a cabeça antes de dormir e nem ao menos umas mãos delicadas que esfregassem as suas costas. Pros dois era portanto o mundo mais miserável e sem sentido das idéias abstratas e profundamente rasas.

Carlo e Rino, para se ter uma noção mais exata, usavam ainda coletes de brim e Carlo, ainda por cima, sempre arranjava um jeito de mostrar o velho relógio de bolso que havia ganhado depois que o avô morreu engolido por um crocodilo nos pântanos da Austrália, e que carregava sempre no bolso das calças. Toupeira era quem apanhava as cervejas e normalmente quem pagava mais no final. O mais sensível, portanto. Os outros dois tinham mais o que fazer, como pensar no que não tinham como tocar, imaginar um futuro promissor, mas os demônios do passado, como julgavam, mesmo sendo o passado há dois ou três meses – mas que meses vazios! –, continuavam grudados nos seus corpos e copos, não tinham passado de fato por nada no passado, porque basicamente nada havia acontecido de fato, além da morte plácida do homem pela sua vontade de ser eterno, como talvez, romantismos à parte, tenha sempre sido: um canalete de idéias escravistas conforme vão se tornando modulares. E notícias reprisadas ano após ano na tv e nos jornais, do tipo “compras de fim de ano lotam shoppings” e “aumenta o número de suicídios no Japão”. Isso porque o modular é a base do humano. O que se torna engrenagem. E os dois percebiam com certa clareza nublada pelas próprias sombras na parede em noites de uma lâmpada só que a auto-destruição era o comportamento talvez mais encarnado no Homem moderno, cansado de construir a repetição sistemática do processo de morte, porque o Homem, para acreditar na própria existência, precisava desacreditar em todo o resto, objetivos triviais que são o que no fundo representam a própria existência trivial da nossa espécie numa galáxia irrelevante no meio de tantas outras maiores. E esse era basicamente o problema da coisa: ambos se sentiam amassados pelo que não tinha lhes acontecido, e se sentiam ultrajados porque o que tinham do mundo era uma sucessão de acontecimentos com os quais tinham agora que lidar diariamente, mas que nunca tiveram a oportunidade de impedir ou alterar. Estavam portanto presos longe do passado e do futuro, dava tudo na mesma aparentemente, porque tudo podia ou não, tanto se fazia, mas pouca gente sabia ainda o significado de uma escolha. E simplesmente não era possível sorrir. Não um sorriso sem dor. Não queriam ter que querer o que queriam.

Carlo tinha sido o primeiro a chegar no bar. Chegou agitado, dedilhando os cachos na nuca, olhos rápidos, um buço debaixo do nariz. Sentou e deu um aceno ao Índio, o balconista de pele oleosa e escura e de olhos que variavam entre o assassinato e o pedido de perdão. Carlo gostava dele, assim como toda a antiga clientela, porque ele não falava nunca. Servia os copos e contava o dinheiro e trocava as músicas na juke box e só. Tudo com um pano sujo no ombro que nunca usava, e os caras ficavam se perguntando por que diabos o pano estava sempre sujo. Quando muito, apartava uma briga entrando noutra bem pior. Com ele seria sempre uma briga pior. Carlo estava inquieto especialmente por dois motivos: o primeiro era que tinha se arrumado com uma guria de 16 anos, virgem, que não podia sair de casa à noite, mas era esperta e queria transar e ele queria muito comer uma virgem, é claro. O Segundo motivo era de ordem sentimental. De manhã tinha comparecido ao enterro do Velho Simão, que tinha morrido entalado com uma sardinha no fim da semana e com quem costumava jogar basquete, junto com mais outros velhos, no aterro do Flamengo. Ele achava uma enorme inversão da lógica um velho morrer no lugar de tantos novos que nem precisavam ter nascido. Um velho num caixão. A pele amarela, os olhos estalados, a cara de cigarro de um trago olhando pra lugar nenhum. Deus, preciso me encher com alguma coisa, Carlo resmungou sozinho antes de meter a cara no copo. Foi quando chegaram os outros dois, discutindo por alguma quantia irrisória. Traziam mais duas garrafas. Toupeira levava safanões na base do pescoço e carregava as duas.

Beberam algumas largas goladas sem falarem nada. Já ninguém mais ali perdia tempo falando o que não fossem pequenas besteiras. Até que ficaram todos meio embriagados, quando Carlo e Rino começaram a cantar músicas regionais e velho hinos operários, enquanto Toupeira contava as próprias unhas boquiaberto, encostado no balcão.

O bar estava começando a encher. Umas 15 pessoas do lado de dentro. Um traficante conhecido, com os cabelos grisalhos divididos no meio e chupados para trás e o rosto esburacado, fumava um cigarro de olhos apertados com duas mulheres de saias coloridas, cintos apertados e cabelos crespos num pompom na frente das testas. Alguns sujeitos bronzeados de camisa regata, boné para trás e 45 anos. Algumas mulheres de cabelos puxados pro lado, poucos da cor original, saias curtas e coxas bronzeadas, todas com caras exaustas, apesar de nenhuma ter cara de quem alguma vez trabalhou. Ficavam por ali confundindo sensualidade com frigidez e ruminando uma conversa de manicure, junto com mais outras figuras de cara murcha e língua azeda. Alguns desleixados barrigudos sem camisa, cheios de tatuagens e riscos na cara, estavam numa mesa afastada. Mais cedo ou mais tarde entrariam no pau, provavelmente por causa de uma mulher ou uma dívida ou um mal-entendido sobre as duas primeiras causas. Dessa vez o louco da casa era Sandro, um sujeito enorme, quadrado, bobalhão e muito carente que, por isso, bebia muito e tomava pílulas estimulantes diariamente antes de se embriagar. 2000 mg. Quando ficava agressivo era difícil controlar o monstro. Certa vez entrou no pau sozinho numa roda de dez, que na verdade devia ser de uns cinco, mas de qualquer maneira eram todos barrigudos, riscados e tatuados... O que importa é que botou todos para correr, estragando o rosto de um seriamente. Diz a lenda que ele apenas olhou o bando com os olhos emprestados do demônio e gritou: “Vocês podem vir todos, e é melhor me matarem, porque eu vou avisando: um eu garanto que mato!”. E na semana seguinte foi preso depois de ter sido confirmada a morte do que levou a garantia na cara. Acabaram levando também em cana outro parceiro do azarado que, na mesma semana, tinha jogado óleo quente no rosto de Sandro pelas costas, deixando sua cara mais parecida com uma uva-passa. Sandro tinha sido solto havia uma semana. Estava ensandecido como um diabo solto numa paróquia. Diziam que tinha começado um curso de direito numa faculdade. Tempos modernos? Dificilmente. Sandro conhecia Toupeira de vista. O tratava como um irmão. Era louco de pedra, em suma. Se aproximou dele o agarrando pela nuca com suas mãos enormes de berinjela:

- E então, Tops... Tu tem um baseado aí?

- Tô sem nada, Sandro...

- Vamo fumar um...

- Pô, cara – disse Toupeira olhando pro balcão – hoje não vai dar. Tô sem nada mesmo.

Sandro apertou com mais força a nuca do outro e cresceu por cima dele com os olhos fervendo d’uma mistura de ingenuidade e raiva, típica dos gigantes de pouco cérebro. Com um dedo apontava pro rosto do pobre diabo. Os óculos do garoto saltaram com o tranco. Eram óculos de lente, das bem grossas e com armações de ferro.

- Toupeira, eu quero saber se tu quer fumar um baseado.

- Querer eu quero... Sempre quero, Sandro... Tu sabe... – disse o garoto dobrando a cara e baixando a cabeça como se tivesse apanhado de pau. Os murros da vida o tinham deixado lento e abobado como qualquer sujeito que tem problemas com a mulher também é capaz de ficar.

Imediatamente Sandro largou Toupeira e se dirigiu ao primeiro almofadinha sentado numa mesa, que calhou de ser um almofadinha do bairro, portanto, foi humilhado da mesma forma, mas tentou manter um pouco de dignidade forjando uma certa intimidade nervosa com o bebê ogro, através de umas risadinhas com as mãos nos bolsos de trás das calças e uns movimentos de cintura para frente e para trás. Sandro arrancou-lhe um baseado da carteira sem dizer palavra e voltou com ele aceso pro balcão. Deu um forte trago e entregou na mão de Toupeira, que apenas ficou parado com a boca aberta. Índio já olhava furioso. Olhava normalmente. Ninguém nunca era capaz de dizer. Só que não tinha medo de ninguém o Índio. Talvez tivesse medo do espelho. Sandro piscou pra ele, mandou um beijinho, se virou para Toupeira, deu-lhe um forte murro nas costas e saiu rindo. Ou urrando.

Enquanto isso, Carlo contava a Rino da publicação de seu livro de contos e de como o mercado editorial era uma corja de preguiçosos, que o mundo tinha se transformado numa grande loja de departamentos e que deus agora era novamente como um parente rico: um empresário com os cabelos divididos em goma que fuma numa piteira e se alia a velhas contradições. Carlo falava muito rápido e com a cara grudada no copo. Estava descabelado e o cigarro não parava na sua mão enquanto soltava seus perdigotos na mesa. Alguns lhe escorriam pelo queixo. O rosto inchado e avermelhado. Os olhos em frangalhos. Escrevia no forro da mesa com uma caneta enquanto resmungava. “O lamento da vida é o que escorre da boca pro assoalho”. Rino pôde ler aquilo.

- Esse livro levou o meu dinheiro todo! – ganiu Carlo. - Ainda não sei por que diabos decidi rodar essa porcaria por conta própria... Agora mesmo que nenhuma editora vai se interessar... Vão achar que sou um cagão, é claro... Vão pensar: “Ih... Se esse sujeito publicou o próprio livro, deve ser uma bomba!”. Eu sei como são esses filhos da puta.

- Então por que você publicou? – perguntou Rino calmamente.

- Porque se eu fosse esperar essas lesmas ia acabar enlouquecendo... Eu preciso me livrar das coisas que escrevo. Chega um momento que me canso delas... De mexer nelas... Então tenho que mandar pro caralho! É assim que funciona comigo.

- Pois eu acho um método bem estranho... Aliás, eu acho que não vende mais muito bem esse teor pessimista...

- Que porra é essa, cara, de teor pessimista? – Carlo bateu com o copo na mesa. – Que merda de papo é esse?

- Você sabe... Essas tuas influências... Só falar de chafurdar na merda... Essas coisas.

- E você quer que eu fale do que, seu babaca, de como é bonito comprar uma estrela com o seu nome na Torre Eiffel? De como é lindo o orvalho da manhã, o quê? Uma dissertação sobre o canto dos passarinhos?

- O problema é que, pra você, escrever é uma coisa traumática.

- Você é tão burro que não consegue entender que não é a escrita que é traumática, mas o que dá vida à escrita. O processo é música! Sou um cara limitado, só isso. Se você consegue escrever bucolicamente como se estivéssemos enrolados em grossos cobertores jogando bridge e tomando vermute, bom pra você! Eu não vejo sentido nisso... Nada faz sentido na verdade... O que eu escrevo faz tanto sentido pra mim quanto três beatas ajoelhadas na grama num domingo de sol!

Riram. Ficaram sérios outra vez. Rino:

- Se você mesmo já não gosta mais do que escreve, como é que as outras pessoas vão gostar?

- Quero que se fodam as outras pessoas! Poe andava de pijama na rua babando com alucinações antes de morrer lelé da cuca e ninguém se importava com ele! Ninguém foi também no enterro do Rimbaud! Acho que nem a mãe dele foi! Até hoje ninguém entendeu o que Joyce quis dizer, mesmo que vivam falando de como ele é bom! Mario de Andrade publicou sozinho! E é compreensível que ele tenha ficado careca rápido... Lampedusa! Morreu e nem mesmo pôde ver a cor da capa do Leopardo!

- Por favor, sem esse papinho de nasci póstumo... Além do que esses caras não servem de comparação. Esses caras já morreram e hoje a gente fala deles. Só isso que podemos fazer. Falar deles e esquecer deles.

- Queria ver se algum deles tivesse nascido num papelote de pó dos anos 80 – disse Carlo num meio-sorriso.

Os dois baixaram os olhos, beberam e bufaram. Carlo olhou quando Índio saiu do balcão e trocou a música. Começou a tocar Down Under. Índio voltou para trás do balcão com os lábios apertados e os olhos fechados, fazendo uma guitarra no ar. Carlo e Rino falavam agora sobre mulheres. Carlo falava da sua. Que era muito legal, um tesouro, compreensiva, fazia massagem, não reclamava de nada, até mesmo o incentivava a sair com os amigos, dizia a ele que só queria vê-lo feliz.

- Claro! – disse Rino palitando o molar – Tu que é um baita fanfarrão só podia se aproveitar da garota. Coitada... 16 anos... o primeiro namorado... que sorte que ela deu.

- Cara, você tem que entender que a traição não tá necessariamente ligada a sexo. A menos que o sexo seja feito pensando em denegrir a imagem do outro. Traição é sacanear o outro. Colocar o pé na frente. E isso eu não faço. Posso até sair com outras mulheres. E quem não quer variar de vez em quando? Sou novo, por deus, preciso experimentar as coisas. Até porque sou um escritor. Preciso da experiência, do transe. Mas não me envolvo. Não olho pros lados. Não troco telefone.

- Qual o teu número? – disse Rino.

- Que porra é essa, cara?! – Carlo franziu a testa tossindo um trago mal dado.

- Pra eu votar em você. Tu fala que nem um político quando fala de amor.

“O amor é um negócio político”, Carlo escreveu no forro da mesa, virado de frente pro balcão, quando viu Toupeira receber o murro de Sandro nas costas, e então disse a Rino por debaixo de um sorrisinho sórdido:

- Pra te falar a verdade, eu já tenho até cogitado deus outra vez...

- Nesse caso você pode ficar tranqüilo... Sua fé está salva! – disse o outro rindo e tossindo, já meio vermelho do trago, levantando o copo no ar. – Porque não foi o Espinosa que falou que deus está em todas as coisas e que a única lei suprema da realidade única e universal é a necessidade? Então... Estando aqui, agora, a gente pode dizer que tá bebendo deus, não é verdade? A cerveja também é deus segundo Espinosa... Uma necessidade no caso, não concorda?

De repente Rino começou a soluçar. Carlo esmurrou suas costas. Continuavam rindo e olhando pras saias. Mas o riso de Carlo era um riso forçado, um riso comum de desespero por alguma coisa incomum na cabeça. Ele disse então, depois de outra golada, que se danasse o Espinosa também, que ele mesmo mal tinha conseguido pagar o próprio enterro, e que só os ditadores assassinos tinham uma morte digna com seus bustos esculpidos nas praças públicas. E era ele afinal que tinha acabado de esfolar o saco pra pagar a impressão de cinqüenta exemplares de um livro que ninguém no mundo além dele ia ler até o final. Pro inferno com a arte! Levantou-se com muita raiva e disse que ia ao banheiro. Mas quando olhou a própria cara enfezada no espelho que corria a parede do bar, começou a rir histericamente.

Entrou na cabine batendo as mãos e cantarolando: “I said, do you speak-a my language?…”. Nem mesmo fechou a porta e disparou sua dose temporária de alívio dourado. De repente uma cabeça se meteu dentro da cabine. Era um homem calvo, troncudo e parecia próximo do enfarte. Seus olhos tinham qualquer coisa de errada.

- The Police? – perguntou o homem.

- Men at Work – respondeu Carlo num sorriso desinteressado.

- Tu é?

- Eu sou o quê?

- Tu é polícia?! – falou mais alto o homem calvo, mexendo seus olhinhos tensos de um lado para o outro.

- Ah, bom! Eu achei que você tivesse falado da música... Claro que eu não sou polícia. Olha aqui, tô de chinelo – disse Carlo às gargalhadas, mostrando os pés. – Olha essas unhas!

Saiu da cabine para lavar as mãos.

O homem alto parecia maior agora que estavam os dois lado a lado diante do espelho da pia. Chegou mais perto e se abaixou um pouco, para poder falar mais baixo.

- É porque – disse mostrando a Carlo um distintivo de metal e couro – eu sou da polícia... Olha só.

- Legal, cara – sussurrou o garoto. - Eu não.

- Você se incomoda então se eu der um pega aqui?

- Quê?! Pega? Não tô te ouvindo direito, cara...

- Não posso falar muito alto – disse o calvo escorando as palavras com a palma da mão. – Eu tenho que ficar de olho, porque senão já viu... Mas eu te dou um pouco se tu quiser também.

- Fica pra próxima, capitão. Eu já tomei demais hoje. Mas fique à vontade. A casa é sua.

Deixou o homem calvo lá dentro e voltou pro bar. Toupeira estava na mesa junto com Rino e duas mulheres tinham acabado de se levantar na frente dos dois. Não se ouvia o que falavam, mas estavam aparentemente injuriadas. Provavelmente por isso, Toupeira levou um safanão de Rino no pé da orelha. Segundos depois Carlo sentou.

- Vocês não sabem da última – Carlo chegou contando. – Me confundiram com um polícia lá dentro do banheiro. Portanto, tomem cuidado comigo.

- Quem te confundiu, um bêbado?

- Um polícia muito educado que pediu licença pra meter a fuça.

Todos riram. Toupeira disse:

- Eu arrumei um baseado com o Sandro.

- E a gente vai fumar aonde? – perguntou Rino, olhando para Carlo.

- A gente dá uma meia hora aqui e depois vai lá na ladeira, ali atrás do convento.

A meia hora durou hora e meia. Tinham achado o caminho da cerveja, o atraso da vida e a razão da tristeza. Roberto Carlos cantava sua dor no cu enquanto uma mendiga dublava chorando do lado de fora do bar. Carlo cutucou Rino que sacudiu Toupeira. Saíram os três cantando Amore Scusami na versão de Caubi Peixoto, menos Toupeira, que não sabia a letra.

Subiram a ladeira. No caminho cruzaram com duas freiras que jogavam baralho em cima de caixotes e fumavam cigarros, pouco antes do convento, na frente de uma mureta. Eram noviças na verdade. Uma delas estava de camisola. A outra estava abotoada até o pescoço mas, de qualquer maneira, a de camisola que era gostosa. Os três passaram andando por elas, que se levantaram imediatamente recolhendo o baralho e espremendo os cigarros contra a mureta. Rino e Carlo se largaram um do ombro do outro e fizeram seus sinais da cruz. Toupeira se aproximou das duas e inclinou a cabeça com a bagana no bico.

- Benção, irmãs. As senhoras por acaso têm fogo?

A noviça abotoada rachou-lhe a testa com um safanão e depois fez imediatamente o sinal da cruz três vezes de olhos fechados. Disse que eram uns vagabundos e que iam pagar por isso um dia, que aos olhos de deus ninguém escapa, por não saberem tratar as filhas de deus. Carlo argumentou dizendo que era tão filho de deus quanto elas e que elas andavam de camisola na rua depois da hora e ainda por cima jogavam baralho e fumavam cigarros. Perguntou se aliás não queriam cigarros novos ou um canivete suíço por um preço honesto. Os outros dois riram. A abotoada se mantinha em guarda, atacava e recuava repentinamente com golpes rasteiros, como beliscões e chutes nas canelas. Os golpes eram tão rápidos quanto os três sinais da cruz que se seguiam, de olhos fechados ou olhando para o céu. Toupeira caiu catando asfalto depois do segundo tapa na cara. A noviça de camisola piscou para Carlo com um sorriso na boca. Abotoada a puxou para dentro bufando. Carlo e Rino ficaram rindo com as mãos no joelhos e depois foram ajudar Toupeira.

De repente ouviram um assobio. Levaram um susto tão grande que Toupeira quase deixou a bagana cair num bueiro. Olharam pros lados. Carlo olhou pra cima.

- É o idiota do Turco.

- Shhhhhhhhhhh... – fez Rino olhando pra cima com as mãos na cabeça.

Turco era um menino numa cadeira de rodas que um dia tinha sido muito amigo de todos os outros caras do bairro. Até o acidente na cachoeira do Horto. Tinha sido empurrado e a coluna tinha se entortado numa pedra. Havia muitos garotos juntos. Sumiram imediatamente. Ninguém jamais tocou no assunto. Depois de quatro anos sentado e deitado e sem muitas visitas nem muitos sorrisos, se embruteceu de tal forma que raramente acendia a luz do quarto. Mas estranhamente ainda tentava se comunicar pela janela com assobios na escuridão. Ainda conseguia fazer um sorriso. Um sorriso constante. O seu sorriso. Um meio-sorriso constante que dessa vez também estava ali na janela. Os garotos o chamavam de Sorriso do Demônio. Mas só o que se via no escuro era que ele segurava um binóculo. Era tudo o que se sabia dele. Era um menino magro com um sorriso constante de diabo que segurava um binóculo numa janela escura.

Então apitou a sirene doentia. Uma vez apenas. Uma vez era problema. Daí foi vermelho, escuro, vermelho, escuro, vermelho... Carlo tomou a bagana da mão de Toupeira, que ficou de boca aberta e piscou os olhos várias vezes, ia engolir inteira, mas Rino parou seu braço, trocaram um segundo de olhar, Carlo partiu a bagana em duas e cada um engoliu uma metade.

Os policiais se aproximaram no típico passo de ganso com indigestão. Bunda pra trás, braços pra trás, cara de cu assado. Veio um só na verdade, um homem alto com cara de enfarte. Sua parceira, uma negrona cheia de bunda e dentes para fora, ficou no carro com a mão no coldre. No que meteu a lanterna na cara dos garotos e deu um assobio desdenhoso, cegou os três completamente. Depois, tudo muito estranho, recuou engolindo a seco. Carlo sacou tudo.

- The Police? – perguntou ao policial, piscando o olho.

O policial rodou duas vezes em volta de si mesmo, apontou a lanterna pra janela do Turco, onde pôde ver o diabo sorrir, então se voltou novamente aos garotos. Carlo sorria maroto, Rino suava nas mãos. Toupeira com os braços pra cima.

- Tudo bem por aí, garotos? Vejo que sim... Só, por favor, não façam tanto barulho que as freiras já reclamaram.

Carlo fez um sinal de continência. O polícia entrou de volta na viatura e saiu arrancando borracha dos pneus.

Carlo explicou quem era o homem e Rino riu. Toupeira tinha se emburrado porque não tinha sentido nem o cheiro do baseado que ele mesmo tinha descolado. Os três sentaram no meio-fio e esperaram o mundo acabar de uma vez. Não seria tão fácil assim. Carlo sugeriu então que, já que Toupeira não tinha ficado com nada, ele e Rino pagariam a noitada. Mas que noitada?, perguntou Rino. Carlo meteu as mãos nos bolsos das calças. O relógio do avô mais trinta reais, dois terços em moedas e tíquetes refeição. Rino vasculhou os seus também: restos de pano retorcidos, três cigarros, um quebrado no meio, uma semente olho-de-boi, um canivete suíço, um ás de paus, mais alguns vales-transporte que tinha trazido do trabalho e umas notas de real amassadas. Saíram os três rumo à Copacabana. Carlo estava de carro.

O carro era um Gol 99 quatro portas. Mas das quatro só a do motorista abria. Entraram os três um depois do outro pela porta do motorista. Por último Carlo, que fechou a porta. Estacionaram na Praça do Lido. Toupeira era conhecido de um vagabundo que o chamava de Família e ganhava uma grana nos carros das próstatas vencidas que visitavam a “vida noturna” por ali. Por que ele chamava Toupeira de Família e por que muitas putas e travestis pareciam conhecer Toupeira era mais uma das coisas em Toupeira que não se sabiam. Rino chegou à conclusão de que não sabia quem era Toupeira. Não sabia nem o nome dele nem onde morava. Carlo não queria conclusões. Foi comprar cerveja.

Pararam numa esquina e Rino disse que precisava mijar. Se afastou cambaleante enquanto Toupeira conversava com um porteiro de gravata borboleta e pouca altura e Carlo falava em inglês com dois turistas de chapéu panamá que não fechavam a boca nunca. Do lado, duas putas. Uma morena com um enorme topete de cabelo crespo e muito batom vermelho, as sobrancelhas juntas mas umas belas pernas cobertas de saia. Baixa. A outra era bem negra, essa sim toda dura, parecia de borracha, e as luzes da noite a transformavam numa ninfa febril dos trópicos, deixando sua pele prateada como a água do mar. Alta.

- So what’s gonna be for the whores? – disse Carlo carregando no cockney a um dos gringos. Ao mais alto e, aparentemente, o mais estúpido.

O outro, mais baixo, puxou seu chapéu e começou a se abanar, com a outra mão pra cima, em volta das mulatas. Uns bêbados velhos começaram a rir e batucar numa lata de lixo enquanto o gringo se abanava com o chapéu, mandava o outro braço lá em cima e dançava junto das putas, as duas entediadas em cima de um carro, sugando seus cigarros, as bocas dobradas de lado. O maldito ainda é careca, pensou Carlo quando o viu sem o chapéu.

- Quanto vai ser? – então se virou pra puta morena de sobrancelha junta.

- Cem cada um.

- One grand each – virou pro alto de chapéu.

- Whadafuck! – gritou o alto tirando o chapéu. Também era careca. Deus, eram irmãos!

- Eles dizem que é muito – Carlo virou pra monocelha.

- Muito ele dá é o cu dele! – ela gritou e fez seu pompom na testa balançar.

- They say they can do for half each. No less – Carlo se virou abrindo as mãos pro gringo.

- What for? – se meteu o baixinho, a essa altura já de volta com o chapéu na cabeça.

- How do you mean what for? – disse Carlos numa voz débil.

- Let me explain – interrompeu o alto. – We are a couple (irmãos coisa nenhuma!) and we are fetishists too. So we want the two of them to rape us first, then to cut us off. Then we want some champagne on us. We pay for the champagne, of course. – Champanhe ele falou num sotaque escroto francês.

Carlo se virou pras duas putas entediadas.

- 50 cada um. Grana fácil. Vocês não precisam nem trepar. É só amarrar os dois na cama e enfiar alguma coisa na bunda deles. Depois vocês cortam o rabo de cada um e jogam álcool em cima. Disseram que são dois pervertidos americanos. Vai ter champanhe de graça também.

Rino já tinha voltado e estava ao lado de Toupeira, enquanto este filava um cigarro do porteiro de boate com gravata borboleta. Carlo veio de volta e as putas saíram na frente, com os dois gringos abraçados atrás delas cantando a Jardineira como se estivessem no carnaval. Mas cantavam com sotaque do Village.

Na porta, Toupeira apresentou seu amigo Move Montanha, o tal porteiro miniatura com quem conversava. Deram as mãos, mas Carlo só olhava para Tops.

- Qual é o teu nome afinal, cara? – Carlo perguntou pro amigo de óculos.

- Podemos entrar de graça – respondeu Toupeira num tom abaixo. – E ainda ganhamos uma vodca com suco de laranja cada um.

Carlo ficou olhando para Toupeira com cara de bunda quando Rino passou arrastando os dois pelos ombros. Numa marquise luminosa acima da entrada piscava em rosa e vermelho: “After Dark... After Dark...”. Era uma das boates que tinham a recém sido interditadas pela fiscalização sanitária. Ficou um mês fechada. Já piscava outra vez. Segunda interdição no ano. Tem certas coisas que simplesmente precisam continuar funcionando.

Assim que atravessaram a porta, deram de cara com um corredor muito escuro que parecia uma curva eterna. No final do corredor, outro sujeito de pouca altura e gravata borboleta – devia ser uma coleção deles, pensou Carlo – surgiu na frente dos três com dois copos de um líquido laranja-aguado na mão. Entregou os copos aos dois primeiros por cima de um sorriso que parecia preso na sua cara com cola vagabunda. Se virou para um balcão cheio de lâmpadas de 100 watts das mais comuns, todas presas em fileiras, e pegou mais um copo cheio. Rino vinha por último, com uma moreninha de cabelos alisados curtos e escovados metida numa cinta-liga cor de areia e grudada com a mão no seu saco. Se desvencilhou bastante assustado, principalmente porque seu pau estava flácido como o saco de um velho. Isso levou a moreninha, que também tinha uma pinta falsa na boca, falsa porque borrada, a fazer uma cara de nojo e sair de lado.

Rino nunca havia entrado num bordel. Foi o único dos três a admitir isso. Carlo provavelmente não tinha entrado num também, mas forjava uma certa intimidade enferrujada e não disse nada quanto a isso. Tinha a boca aberta o tempo todo, como Rino. Sobre Toupeira não havia dúvidas. Assim que entraram no grande salão, foi recebido aos beijos por uma senhora já bem gorda, de cabelos encaracolados loiros até a cintura e brancos em cima da cabeça, faixa branca na testa, um buço mais grosso que o de Carlo, com uma cinta-liga azul metálica sem sutiã e uma verruga bem no meio do pescoço. Tetas enormes. Abraçou Toupeira com muito carinho e levantou um pé para trás quando o beijou na boca. Usava dois saltos pintados com as cores do arco-íris. Todas as cores. Toupeira enfiou sua cara no meio dos peitos da velha e fez um barulho alto com a boca. Depois arrastou a mulher pela mão até os amigos, que coçavam os olhos um pouco atrás.

- Meus camaradas – disse com as duas mãos por debaixo dos peitos da velha, olhando para eles, segurando cada um com uma mão – esses daqui são meus camaradas também – então olhou para Carlo e Rino e riu, um riso doentio. – Carlo é escritor e Rino é um grande músico! São meus melhores amigos no mundo!


Então se voltou mais uma vez para a velha.

- Rapazes – disse olhando pra ela – essa é Janine Afrodite, minha namorada.

Carlo e Rino ficaram parados, se olhando. Toupeira largou Janine e se aproximou dos dois. Agarrou cada um com uma chave de braço no pescoço e os trouxe para perto dela. Estalaram os olhos quando viram as tetas de perto. Os mamilos eram enormes, chatos, as veias muito verdes em volta, em caminhos tortuosos, os peitos sugados pelas estrias nas beiradas. Depois olharam pra verruga no seu pescoço. Tinha dois fios de cabelo na ponta. Os cabelos eram brancos.

- Por favor, rapazes – disse Toupeira – quero que cumprimentem a Janine. Querida?

Janine segurou com firmeza as duas tetas por debaixo e esfregou uma na cara de Carlo e outra na de Rino, quando Toupeira os fez baixar as cabeças. Os dois fecharam os olhos e tentaram não respirar nem pensar em nada. Depois Janine trouxe de volta as tetas e começou a rir. Tinha um riso de homem cansado e feliz.

Deixaram Toupeira ali com sua paixão e se mandaram para ver o resto da casa. Havia um pequeno palco quadrado cheio de lantejoulas grudadas, algumas já tinham caído, como algumas putas ali também já tinham caído, duas por exemplo no corredor do banheiro, uma deitada sobre a outra no chão. Havia ali mais uns cinco ou seis punheteiros sentados nos sofás de couro sintético vermelho com as mãos dentro das calças e as cabeças atentas se mexendo para os lados com olhos bem abertos. Três usavam bonés de abas envergadas, esfolados na ponta da aba e encardidos. Pareciam muito com os tatuados barrigudos do BG Bar. Dos outros dois, um era muito gordo e tinha a camisa aberta com um medalhão dourado no meio do peito e a mesma putinha que tinha agarrado as bolas de Rino sentada no colo. Comia amendoins num cinzeiro e suava bastante. Largas costeletas pintadas de preto. Quatro dentes. Um de ouro. O outro estava dormindo jogado num canto, todo melado. Apenas um corpo murcho largado. A luzes eram coloridas e a noite estava no fim desde o começo.

No microfone ouviu-se uma vós comprida e nasalada, que estourava os bês e os pês quando falava.

- Atenção senhores, nosso show já vai começar! Se aproximem, se aproximem! Sentem nas suas poltronas porque hoje teremos a musa que vocês tanto esperam nas noites de quarta-feira... O medalhão de Ébano, a flor do deserto, com vocês, a minha, a sua, a nossa ADRIANA BBBOMBBBOM!!!

A casa toda tremeu quando se ouviu a letra b de bombom abafada pelo som da voz ao microfone. E então uma mulatinha de cabelos curtos e crespos, que estava bocejando de braços cruzados ao lado de Rino, entrou no palco com um ferrolho e um vibrador nas mãos. Imediatamente acionou o ferrolho no cu, no primeiro movimento de esticar as pernas no chão. Usava cinta-liga sem calcinhas. Tinha tudo no lugar. Mas os cabelos muito curtos e muito crespos, quando estava de costas, a faziam parecer um menino de rua. Talvez tivesse sido algum dia. Começou a se esfregar no vibrador e a subir e descer no chão, soltando altos grunhidos, altos demais para serem verdadeiros. Rino e Carlo se aproximaram. Carlo se mostrava maravilhado, ria e olhava pro amigo, apontando. Rino estava bem sério de braços cruzados, um pouco afastado do palco. Mas nem por isso menos fascinado. Um certo caguaço de ter que gostar daquilo.

Adriana Bombom de repente desapareceu com o pedaço de borracha no meio das pernas e voltou com um anãozinho metido numa gravata borboleta e sem camisa. Agora com vocês, O Grande Pancho!!!, a voz nasalada anunciou. O anãozinho usava uma sunga colorida de criança e sapatos pretos sem meia. Ficou deitado de costas no chão enquanto Bombom esfregava seu bombom na cara dele. Depois pôs o anão de pé – ele parecia de brinquedo – e arrancou sua sunga fora. Como era de se esperar o anão tinha uma GRANDE vantagem. Bombom subiu em cima dele com todo o seu metro e cinqüenta e o anão não suportou o peso, se largando de costas no chão. Ali começaram. Depois fizeram um 69 que na real era mais um 65, já que o anão não conseguia alcançar o bombom de Adriana no chão. E então Adriana ficou de quatro e o anão mandando ver por trás. Um anãozinho de brinquedo, parecia à pilha. Ficava ali se mexendo sem parar. Rino viu que Adriana fez uma bola de chiclete e piscou o olho pra ele. Carlo estava de pé, com a cara bem enfiada no palco e uns tíquetes refeição na mão, com os braços levantados, a outra mão assobiava. Rino chegou mais perto do palco, as mãos encabuladas dentro dos bolsos. Carlo se voltou para ele. Tinha acabado de enfiar um tíquete no biquíni da Bombom.

- E então, cara... Vamos arrumar umas cabines?

- Como? – fez Rino.

- Umas cabines, cara... Uma diversão...

- Não acho isso aqui muito divertido na verdade.

- Lá fora tão pouco... Já bebeu seu Hi-Fi?

- E mais três...

- Olha ali – Carlo cutucou Rino com o cotovelo. – O que acha daquela ali?

- Aquela de bigode?

- Não, imbecil... Aquela com uma penugem branca enrolada no pescoço.

- Então... Aquela de bigode.

Carlo fez uma careta, disse que Rino era um velho chato e brocha, e então escorregou até o lado do balcão, onde se apoiava a tal puta de bigode. Ficou uns minutos ali com os braços apoiados na parede, fazendo o machão. Depois puxou a mulher de lado, se virou para Rino, piscou um olho, dobrou a cara indicando que fosse ele também procurar uma pega e se enfiou numa cabine escura e minúscula, vedada por uma cortina fina vermelha. Rino ficou vendo a silhueta de Carlo sob a luz, através da cortina vermelha. Viu quando ele se abaixou e tirou as meias. Viu quando ele virou a puta de costas. Viu quando ele desceu para arrancar as calças da puta. Viu que tinha ficado um certo tempo nessa. Depois os dois apenas desapareceram na horizontal. Rino olhou pro seu copo de vodca com suco de laranja. O líquido estava praticamente transparente e havia resíduos sólidos, umas bolotinhas laranjas sambando no fundo do copo. Aquilo tudo era muito triste. Ele não tinha ninguém ali que o abraçasse e pudesse lavar suas costas com uma esponja. Um abraço custava caro demais. Custava a vida toda. Mas Carlo tinha quem lhe esfregasse as costas com uma esponja e ainda assim estava dentro de uma cabine sendo chupado por uma puta de bigode. Estava tudo perdido e os homens nem mesmo sabiam mais o quanto. Simplesmente pararam de tentar saber. Então que se foda a África! Que os homens morram rápido! Nascem demais pra muito pouco espaço! Rino se desequilibrou, afundado no apocalipse, quando sentiu um cabelo roçar seu ombro. Era uma menina bem magra com uma cinta-liga branca e folgada, uns dois números a mais que ela, e uma longa cigarrilha na boca. Ele reparou que muitas mulheres ali maquiavam uma pinta no canto superior da boca. Cílios falsos e enormes. Cheirava a tequila e enjôo. Sentou do lado de Rino e meteu a mão na sua perna por debaixo da mesa.

- Tá sozinho, garoto?

- Estamos todos – disse Rino. E bebeu.

- Você parece desanimado.

- Você é muito perceptiva.

- Não viu nada... Podia te fazer em dois, garoto.

- É uma pena que eu já esteja em dois. Não tenho um puto no bolso. Só um ás de paus.

- Algum outro pau na jogada? – piscou a puta magra de cinta-liga folgada.

- Olha, Solange... Realmente... Talvez seja um mau dia.

- Não sou Solange.

- Tem cara de Solange. Eu tenho cara de que, Solange?

- De cu.

- Ótimo! E é um cu liso ou um cabeludo?

- Você não gosta de mulher, garoto?

- Talvez eu goste mais do que devia, Solange. Você gosta?

- Gosto de você... Você é sensual...

- Não sou, não, Solange. Olhe bem... Olha essa barriga. Você acha ela sensual?

- Parece ser um cara sensível... Que olha a mulher nos olhos. Decidido.

- Bobagem... Estamos conversando. Queria que eu olhasse pra onde?

- Qual o teu problema, cara?

- Você quer dizer hoje ou quer uma lista completa?

- Gostei de você...

- Não tenho dinheiro.

- Nada?

- Um ás de paus.

- Deixa eu ver...

A mulher que tinha cara de Solange então escorreu pelo sofá com a mão por debaixo da mesa até o lado interno da coxa de Rino, que ficou batendo queixo.

- Você bebe, Solange? – disse Rino se afastando um pouco no sofá.

- Quero beber você, bonitinho – disse a cara de Solange com os olhos apertados e um bico horroroso.

- Que tal um pouco mais de romantismo, hein, Solange?

- Você é um puta pé no saco, cara! – ela disse se afastando com violência

- Acho que ainda vai precisar de um pouco mais de romantismo, Solange.

- Dez reais o boquete. Só porque eu gostei de você.

- Já que gostou, te vendo por dez reais.

- O quê?

- O boquete.

- Bicha! – gritou a puta rindo e apontando para Rino.

Rino continuou com um meio sorriso, na frente do seu copo. Então ela foi embora.

De repente Carlo saiu da cabine sozinho e se aproximou rapidamente de Rino. Estava muito ofegante e suado, com os olhos vidrados. Segurou Rino pelo pescoço e o puxou com força da direção da saída.

- Que foi, cara? – disse Rino diminuindo o passo.

- Te explico lá fora.

Assim que passaram pela porta levaram o primeiro murro do dia claro nos olhos. O sol ainda longe, depois do fim da Terra. Uma enorme menstruação de galinha caipira num pires laranja carregado de ódio. Carlo seguiu andando até a praia e então se atirou de barriga pra cima na areia. Rino foi correndo até ele e se atirou do lado.

- E então cara? – disse Rino.

Carlo ficou um minuto numa respiração pesada.

- Matei... a puta... – disse Carlo.

- Como assim, matou a puta, cara?!

- Enforquei ela... Foi sem querer... Apertei demais... Muita raiva...

Ninguém falou nada durante um minuto. Os olhos de Carlo sem piscar refletiam o ódio laranja do sol nascente, que parecia morto há milênios.

- É isso então... Você foi lá, trepou, se limpou e então enforcou a puta... – disse Rino olhando pro chão e coçando a cabeça. – Claro... E por que motivo eu devia achar isso estranho?

Carlo se virou com os olhos cheios d’água.

- Você sabe o que... hic up!... ela me disse?

- Não sei se faz alguma diferença saber agora...

- Que eu trepava que nem uma mulher...

- E aí você vai e mata ela... Claro, claro, razoável...

Ouviram sirenes do outro lado da rua e uma gritaria de mulheres fora de controle. Uma ambulância chegou queimando os pneus. Carlo e Rino saíram correndo como estavam e pularam no mar de olhos fechados. Ficaram com meia cabeça para fora, as roupas chupadas dificultavam o nado. Olharam para a calçada tremendo. Nadavam fora do mundo e o mundo era uma piscina suja como o mar sujo de Copacabana. Um filme para daqui a mil anos. E quando se abre uma porta nunca se acha nada além do outro lado. Mas sempre é cedo o suficiente para morrer. Espinosa sabia disso e estava num lugar melhor certamente. Pelo menos sete palmos melhor. Toupeira tinha acabado de se tornar noivo de Janine Afrodite e procurava seus dois padrinhos para dar a notícia, quando foi abordado pela polícia.

Comentários

Muito bom, Léo. Valeu a pena a longa leitura. :)

Postagens mais visitadas