BALAS, BEIJOS E BILHETES >> Carla Dias >>

Quem se permite alcançar pelo que acontece a sua volta, que observa o que vai além do universo que criou para si mesmo, está sujeito à inspiração na sua essência.
A nossa existência remete ao aprendizado. Temos de aprender a ser não apenas a pessoa que a geografia, a família e a sociedade nos permitem ser. Temos de ir adiante... Inspirar-nos.
Sim, eu me permito inspirar por balas. As cores dos seus papeis, os formatos, inspiram-me, assim como a curvatura do corpo do menino que pega a bala que caiu no chão, ou o olhar desamparado do dono do bar que vendeu a bala ao menino. O resmungo da mulher que espera para ser atendida.
Inspiram-me também as fotografias que contam histórias. Minha mãe tem algumas delas, tão antigas quanto eu, com pessoas das quais não sei o nome, apesar do parentesco. Ah, que sou deveras distraída com nomenclaturas, mas não esqueço o sorriso. Inspira-me o sorriso das fotografias amareladas. E os beijos, que são inéditos, sempre. Um nunca é igual ao outro. E os bilhetes, grudados na geladeira, deixados sobre a mesa da cozinha, trocados na sala de aula.
Permitir-se inspirar é como escancarar as janelas, sair para um passeio, debaixo de chuva. É atrever o olhar, ousar o sentimento. Abrir o coração para o que vem e tentar escolher o que nos faz bem.
Inspiram-me, também, as canções. Escrevi um livro de poesia inteiro ouvindo os mesmos discos, do mesmo artista. E capítulos de romances, trechos de contos, escutando o que diziam tantos outros, os sons que emolduravam os seus pensamentos. Muitas vezes, somente os sons.
Há frases que escutei durante a minha vida, nem sempre dirigidas a mim, mas que ainda ecoam no meu dentro. Às vezes, elas invadem a minha lembrança, e parecem ter sido sussurradas nos meus ouvidos. A voz é a mesma, assim como a entoação. Vêm junto com a lembrança cores, cenários, cheiros. É como se elas vivessem por perto, em total silêncio, e vez ou outra viessem me visitar.
Inspirar-se com o que a vida faz acontecer conosco e à nossa volta, leva-nos ao ambiente amplo da poesia. A dor não precisa inspirar somente dolências, mas também bálsamos. As desventuras podem ser apenas obstáculos, e mesmo que elas evitem chegarmos onde queríamos, é certo que o destino nos reservará gratas surpresas.
Comentários
Adorei sua crônica, inspirei-me a escrever algo hoje!!
Suas palavras realmente inspiram. Principalmente, a prestarmos atenção ao simples, às coisas que estão à nossa frente e nem sempre percebemos.
Fernanda... Mesmo sabendo da insistência da maioria em não atende ao chamado, melhor a gente sempre mandar convites para que os outros se inspirem. Como tudo na vida, pode ser que não desistindo consigamos tocar alguém que, até ontem, acreditava ser incapaz de ser inspirado de uma forma bacana.
Marilza... Você sempre gentil... Obrigada por fazer parte de tudo que escrevo.
Vanessa... Adorei saber o que a inspira. E assim como você, acho a doçura muito boa, e ao contrário do que a maioria imagina, ela não vem acompanhada da incapacidade de ser forte, de lutar pelo justo. A doçura tem uma força transformadora.
que a energia está no ar."
"atrever o olhar,ousar o sentimento" é um curso completo de criação literária. Parabéns pelo texto.
Albir... Obrigada. Atrever... Ousar... Há verbos que são mesmo fascinantes, não?
Tenho lido muitos textos seus, mas este tocou a minha alma e me proporcionou um mergulho no meu "dentro", como você bem o diz... Este meu encontro com o seu texto pode ser mais uma oportunidade tão linda como a que tive por intermédio do "Crônica do Dia" com Paula Pimenta... Hoje ela é a escritora preferida de meus alunos!!! Parabéns pela sensibilidade...
Ângela
A Paula Pimenta é gente muito boa, ótima escritora. Sou fã dos escritos dela.
Mais uma vez, obrigada. Beijos!