RECALL [Ana Coutinho]

Chamam os compradores dos produtos que, provavelmente, não previam esse trabalho, mas, de certa forma, ficam gratos por terem a chance de corrigir o que já deveria ter vindo certo e não veio. E daí lá vão eles procurar a empresa responsável, levar seu produto, receber um tratamento mais ou menos e sair com o produto correto, novo - ou não - mas perfeito, como eles gostariam que fosse desde o início.

Os relacionamentos estão cheios de erros que passam sem que sejam notados por uma das partes. Você pode ter tentado absurdamente, insistentemente, fez todas as checagens necessárias, usou sua voz mais doce e seu melhor sorriso, mas não deu certo. Passam-se meses, talvez décadas, e você percebe que pode ter pesado um pouco no ciúme. Talvez tenha sido muito exigente, talvez tenha sido muito melosa, talvez tenha reparado demais na sua própria doçura e esquecido as necessidades do rapaz, talvez... E aí, dá vontade de fazer um recall.
Anunciar em um jornal: “Você, que conviveu comigo entre 1998 e 2001, experimentou o mais doce dos meus sorrisos, aguentou lágrimas infindáveis e tentou arduamente, mas, no final, desistiu. Você que ficou me esperando na noite de sábado mais fria e chuvosa de junho, quando eu não consegui sair do trabalho. Cheque se minhas cartas têm data de um inverno de 1999 e, caso positivo, favor comparecer no endereço blablabla, com a documentação necessária para efetuarmos um recall.”

E o contrário. E se ele, aquele panaca, te chamasse para um recall? Você poderia ler o anúncio no jornal, espantar-se e dizer, quase sem respirar: “Sou eu! É ele!” e, antes de dormir, pensar se iria no recall ou, de repente, deixaria o panaca esperando - afinal, quem mandou perder o timing?
O recall deveria servir também para o mundo profissional. Sabe aquele emprego? Aquele que você adorava, mas que fez aquela bobagem ou deixou de ter aquela idéia brilhante tão habitualmente sua? Pois bem. Ligue para a Globo e anúncie em um comercial do Fantástico, com letras garrafais: “A psicóloga Maria da Silva vem por meio dessa anunciar a todas as empresas nas quais trabalhou entre 1994 e 1999, tanto como estagiária, quanto como funcionária efetiva, que as mesmas devem comparecer a partir da próxima semana para um recall de atualização de conhecimento. A psicóloga pede desculpas pelo incômodo, mas faz esse comunicado visando garantir a qualidade de seus trabalhos e a satisfação dos que acreditaram nela, ainda um pouquinho antes da hora ideal”. Já imaginou? Eles te ligando pra uma outra chance?
Quem não precisa de uma chance a mais na vida? Tantos erros, tantas peças que precisávamos ter ajustado melhor, mas não vimos. Deixamos passar e liberamos os brinquedos com peças pequeninas...


Ah, que bom seria... Se pudéssemos acertar essas contas de um passado errado. Se fôssemos assim, uma montadora que errou numa fabricação. Certamente elas também agradeceriam, já que o odiado recall deixaria de ser vilão para ser a chance. E se a Volks e a Kibon precisam, como não iríamos precisar, não é?
Imagens: Jack in The Box with Chart, Dennis Harms; A Kiss in the Park, Kim Andersen; Father Son Talk, Donna Eaton; Girlin Orange Coat, Kim Andersen
Doce Rotina
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Maria Rita