QUEM NÃO ME TORNEI >> Carla Dias >>

As noites que passei em claro, batendo papo com Deus e com o olhar voltado ao futuro, foram noites decisivas. Frente ao espelho, consertando com uma auto-bondade falseada a estrutura de mim que não cabia em panos ou na realidade que sorvia. Encarando o diariamente com aquela inquietude que, para quem via de fora, era apenas um silêncio matuto, de quem ruminava planos que tinham tudo para dar certo no logo adiante. Mas que, no fundo, era a mais pura solidão. E no cenário dela construí esperanças que buscavam pelos seus pares, pois nem mesmo elas agüentam o isolamento por muito tempo.
As provações pelas quais passei, ah, que nem sei como engoli. Não sei, até hoje, por que adoravam galhofar de mim os meninos da escola. E para criar a lonjura necessária entre nós, eu sonhava com um príncipe encantado de desencantos, olhos chorosos, uma penca de problemas para resolvermos juntos. E que se permitia fascinar pela sensibilidade; que conjugava importâncias a ponto de me fazer desejar, profundamente, seguir adiante no universo das querenças e desavenças. Na falta da aparição desse príncipe, permiti-me compreender que, de dentro pra fora, a jornada sempre é solitária.

Os dias em que passava assuntando possibilidades eram os que me agradavam mais. Lavando louça, enquanto o pensamento visitava uma idéia. Na minha cabeça, criei diversas de mim: militante, pacifista, antropóloga, pessoa dos afazeres sociais. Pensei, desde sempre, que faria alguma diferença nessa vida; que descobriria um jeito bom de ajudar as pessoas. E então percebi que, freqüentemente, também as magoamos.
As noites ofereciam o silêncio necessário para que eu refletisse sobre meus medos. Temia me tornar uma pessoa medíocre, sem sonhos, sem buscas, acostumada demais com o que vivia que, ainda que insatisfeita, desempenharia sem pestanejar meu papel de conivente com a realidade. E este tem sido um temor companheiro, pois não há época para ele. Não há fase que o delimite.

Pensei que seria uma pessoa de valor imensurável, acreditei piamente nisso, como se realmente houvesse como escolher este significado. Porém, hoje percebo que essa importância é uma conquista diária e que nem sempre está em grandes feitos, mas na sutileza e na simplicidade de cada experiência pela qual passamos. Que se trata de um estado de espírito que é construído aos poucos, e que se desfruta também dessa forma: homeopaticamente.

Imagens: Anny Jacopetti
www.carladias.com
Comentários
Simplesmente linda.
Você escreve muito bem.
Muito obrigada e meus parabéns!
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece:
Como não fui eu que fiz?"
Li. Chocou. Sou eu, desnudada. Como assim? Aí, pensei que fosse a única. Só até ver os comentários.
"Como não fui eu que fiz?" Essa é fácil de responder... tivesse eu o seu talento, poderia tê-la feito, pois me vi ali por inteiro.
Carla, obrigada.
Beijos
Chris