Latrocínio na Cidade Baixa >> Leonardo Marona

Sentados onde os estupros aconteciam, pessoas enxergavam vultos tenebrosos, aprisionados em planetas obscuros que, no entanto, ninguém mais podia ver.

Lentes frágeis de solidão adocicada, folhas amareladas vomitando pólen, cinzas amarelas amarelo-cinza. Segundos suicidas em reviravolta. Eretas heranças hesitam no fundo dos bolsos dos marinheiros de Whitman. Como péssimas pinturas expressionistas, algumas figuras enigmáticas perdidas para sempre no elo entre os tempos olham de esgueira com a boca pintada de batom e esmurram delicadamente seus próprios cérebros. Garotos raquíticos com anemia exibem seus shorts de basquete. Algumas meninas mais bonitas e bem formadas já não sabem como se posicionar e ainda assim continuar despertando algum interesse. Aquela mão cheia de dedos que sobe por dentro da menina, um punhado de grama lhe tampando a cortina dos olhos. Essa poeira névoa coquetel de frutas cristalizadas, essa tão-falada síndrome sobrevivente, essa poeira.

Todos mortos, com óculos escuros, mascando a própria bochecha através de unhas decibéis. Inclusive essa menina.

Aftas como séculos de restos e desejos múltiplos irrealizáveis. Saltos como espuma da loucura de uma garota perdida em si própria, nos braços de um desconhecido barbudo que a drogou à força. Alguém que talvez houvesse passado a mão na sua jaqueta beat – eles a arrancaram para longe dos seus quinze anos.

De resto – o céu escorria verde sangue mofado – estavam também ali seus braços procurando farpas de sol diante da cegueira absoluta da lua, dentro da mente de qualquer um. E lá ela. Jazida. Jogada. A pele marcada pela reclamação da espécie dividida em castas. Talvez a memória momentânea da terra verde solar sobre a testa morna da menina pobre que recobrou seu fôlego gelatinoso num chafariz mentolado de aspas.

A mesma menina que, poucos passos antes, tinha me roubado a jaqueta das idéias. Agora enxugava o soluço cartilaginoso de um adeus hesitante, o suor que pouco antes havia criado um livro nunca antes lido, tão rápido de se ler quanto o último movimento, antes do punho firme na barriga. Para não ter que dizer a ela, levada para longe, depois que me deu um segundo da sua luz, a mesma luz que lhe faltava enquanto eu pensava nela agora, toda trapo de brim encarnado: morta. Rondada por nuvens aflitas.

Assim pude ler o pergaminho do meu tempo. A atitude é tudo o que importa justamente por ser estúpida. Escutava-se o desesperado lamento das coisas que se moviam em silêncio. Valsa muda de ingênua comoção em atitudes metabólicas. Todos bravos idiotas anjos antipáticos cativantes alcoólatras sensíveis que perderam a emoção porque se tornaram cúmplices dos escravos (dela) e depois os próprios escravos (ela sendo arrastada) e era justo. Garrafas em punho enquanto eu pensava em mim mesmo como grande farsa fragmentada em rostos sem fim, como o dela, ali, a boca monstruosa, o estômago parindo o medo, programação infinita de um mundo incompreendido, engaiolado em si mesmo, esparramado sobre as tripas do meio-dia nublado.

Sua jaqueta, seus quinze anos, minha estrada fatiada em lágrimas de farpas e dúvidas permanentes, quando bem repartidas num filete de dor e carne.

Acordo com quinze olhos fartos dentro das idéias sonolentas e firmes. Cansado de tanto que o nada tentava nadar e nadava tanto que nada acontecia entre tantos entretantos.

Cansado – totalmente cansado – da mentira pavorosa em letras preocupadas com fins históricos, que se amontoam como vermes nas prateleiras dos estupros comerciais. Da inútil contradição das espécies disciplinares (talvez uma sirene, talvez uma pasta de sangue) na disparidade absoluta entre as frases bem-colocadas.

Desisti de esperar e fui, embora meu fantasma mais sensato tenha me aconselhado a escolher o caminho do aconchego teórico. Pobre viúva virgem, com frio prostituto, sem sua jaqueta. Não, não se canse ainda. Vive-se o que se pensa, e não o contrário. Sem fim, que o fim é parar. Somos todos essas caixas vazias, essas saias insaciáveis, essas pernas suadas de passos mudos e latentes em assoalhos distantes e fiéis, esses corpos coloridos estendidos em tesão agudo frustrados placidamente para o livre entendimento das feridas hemofílicas intactas através de categorias para o fim dos tempos. Mas não há fim dos tempos. O fim dos tempos é agora, está sendo, já foi, não há motivo por que falar no fim dos tempos. Somos o tempo e, como ele, somos também seu fim e começo. Não se preocupe com o fim dos tempos, querida. Posso te chamar de querida, não posso?

Carnes secretas entranhadas em cada esquina esfaqueada. Entre cada cerca contaminada de passos tortos por um desejo bêbado comum. Um carro de janelas abertas cheirando a acordos ditatoriais através de charutos molhados. Uma carta de alforria para o exterminador. Uma rosa, para ti, pelo romance. A explicação dos moinhos de vento numa parede pintada com tinta acrílica. Um salto em órbitas oftalmológicas. Um bar com o nome do pintor preferido. Cabeças nos colos dos poetas, uma briga de casal – a mulher bem mais velha se defendendo de um canalha saxofonista. Um sorriso, outro, mais outro. Dois apertos de mão, uma canção chorando em pânico. Gritos espremidos em sussurros pré-matinais. Outros tantos corações apertados e divinamente satisfeitos – desamparados pela história dos homens, pela derrota dos sonhos prévios, pelo alvoroço das flores mortas (levadas pela gilete da vida) que amamos como flores rançosas, a quem devemos tudo. De quem precisamos nos livrar: o adeus de cada dia.

Precisamos vê-los todos partir como jaquetas – eram dois, três, quatro? – sem lenços ou rodeios. Nada disso importa agora. Tudo é possível quando os sonhos deixam a realidade pequena.

Adeus a tudo que está morto. Para haver o novo dia em que o sorriso patético dê lugar ao grito primitivo do diálogo, mesmo que diante do espelho: uma carreira curta, dez braços apontando para a – mil braços! um milhão! – mesma direção sem dizer adeus, sem dizer perdão. Dez braços reduzem a distância do sonho. Dez sonhos reduzem a distância do espaço. Dez passos reduzem a distância do soco. Mas não é ela ali, sou eu.

Acordo recíproco e completo de alma, mas em outro caminho distante do seu trançado brim-carmim: no estômago secreto da minha mais honesta farsa. Que me escorre pelas bainhas das calças.

Comentários

Postagens mais visitadas