TRADUÇÕES >> Sergio Geia
Um caminhão chama a atenção do morador-tradutor, oitavo andar, dez pra seis.
O movimento é estranho, incomum na avenida letárgica.
Filme: com o motor apagado, ele está de esguelha, a caçamba para sua mão, a cabine para a outra, como se quisesse fazer o movimento de retorno — irregular naquele trecho —, mas que parou no meio do caminho.
Decerto almeja fechar a rua, impedir a passagem. Decerto estão assaltando o banco da praça, especula o morador-tradutor.
Mas há também um movimento estranho nas imediações, nos fundos da casa abaixo, bem na frente de onde o caminhão enregelou.
Pessoas chegam, corre-corre danado, algumas invadem o grande salão que de uns tempos para cá virou espaço para aulas de capoeira.
Decerto estão conluiados com os homens do caminhão, com a bandidagem que assalta o banco, ele prossegue em suas especulações.
Mas na casa verde, do lado de lá da rua, também na frente de onde congelara o caminhão, uma senhorinha e uma enfermeira (imagina ser uma enfermeira pela vestimenta inteiramente branca) observam tudo com atenção, a senhorinha põe a mão na boca parecendo assustada, a enfermeira insiste para a velhinha entrar, ela finca o pé, parece dizer daqui não me arredo.
Talvez sejam curiosos que, sobressaltados pelo movimento estranho, não têm noção do risco que correm ao ficar ali, conclui o morador-tradutor. Depois são alvejados, viram estatísticas, simplesmente desaparecem; curiosidade mata.
Pois os bandidos, dois, surgem do nada e tomam de assalto o caminhão, o som estridente de um motor de caminhão desassossega a vizinhança, cinco pra seis. Manobram à frente com deleite, como se o veículo fosse um dragão lançando fogo pelas ventas, faz que vai mas não, faz que vem e vem, bem na direção da senhorinha e da enfermeira. O morador do oitavo andar põe as mãos na cabeça sussurrando oh, meu Deus!
Prepara-se para ouvir o estrondo maior que decerto virá da praça, dos bandidos explodindo a agência bancária, até pensa em entrar, ligar para a polícia, mas também é pego pelo bichinho da curiosidade, e parece — bem tétrico — querer ver o desfecho da cena, o caminhão atropelando curiosos na calçada, mas de repente, o que vê é algo mais assustador e mortífero.
Os homens abandonam o veículo. Depois do descarrego da areia na calçada da casa verde, apresentam uns papéis à velhinha, que assina. Voltam para o caminhão e o dragão vai embora, sem cuspir fogo. A velhinha e a enfermeira entram fechando o portãozinho branco. Na casa debaixo ele observa a aula de capoeira começando.
Então, irritadiço com a monotonia cotidiana, o morador-tradutor fecha a sacada desapontado. Suas percepções mais uma vez falharam. Arruma coisas na mochila, enlaça-a ao ombro, sai para trabalhar.
Ilustração: Gustave Caillebotte , 1875, “Homem na janela”
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