SEU SERENO ME DESCOBRIU >> Fred Fogaça


Há duas semanas postei o caso de Seu Sereno e, coincidência, hoje tem mais. 

Não era senão hoje cedo, sexta-feira e eu em casa, me ocupando de me preocupar com mundanices a que se está sujeito plena semana útil, quando recebi uma ligação de número privado que, quase como geralmente, não atendi. 

Tem uma coisa: se você faz uma ligação plena pós-verdade liquida, você tem que ter coragem. 

Fora que eu, democrático de costumes, não atendo a nenhuma. Não fosse, nessa ocasião, um quê de tédio e um certo pressentimento.

Com que aparatos não se preza a discrição? Uma velha conhecida, com celular descartável só para caso de, falando que tem uma estória pra mim.

Levonor, cheia de casos. 

Já imaginava.

Talvez, mas eu não posso confirmar pra vocês, seja questão de tradição. Donde vem tais Gestrel? Não ligo sobrenome à nacionalidade, mas imagino um aconchego. Tenho de me lembrar de perguntar isso a ela.

Seja como for, estranhei a cautela: ela tem esse entusiasmo natural pelas pessoas, suas ligações e desafetos, uma empatia empírica notável que não deixa qualquer sujeito estar sozinho em hora difícil. Sobretudo, expansiva.

Mesmo assim, Levonor é amiga de Seu Sereno.

Que ligação nos unia? Seu Sereno, ermitão, contraditoriamente é bom amigo de Levonor. Melhor, inclusive, que meu. Nós conhecemos à força do ódio pela poesia e já há muito tempo, mas só com Levonor ele é leve e, oxalá, livre, coisa que, convenhamos, lá também não é difícil com Levonor. 

Seu Sereno precisava dessa companhia.

Levonor e eu, e isso é outro ponto de estranhamento, não eramos lá tão bons amigos, sabia dos seus casos de conversas de bar mas nunca ela recorreu a mim com tamanha cautela. O que se justifica quando se trata de Seu Sereno, mas aquilo se aproximava de um segredo de estado.

"Bianquinho" - era assim que ela, com toda sua ousadia alegre, chamava Seu Sereno - "deve estar precisando de ajuda, mas não sei o que fazer" - tinha certa a apreensão no falar. 

Questionei, tanto o motivo de falar tão baixo, quanto o que era tão urgente e secreto assim.

"Estou com ele aqui, no sítio, mas não pode saber que vim pedir ajuda, Sabe que Seu Sereno odeia ajudas" - falava como se olhasse de um lado pro outro, se certificando.

Eu sabia bem que Seu Sereno odiava ajudas: eu mesmo, querendo lhe expor a história aqui, quase me tornei desafeto dele. Sorte é, ele não abusa de tecnologias, eram remotas as possibilidades. Não descarto, porém, um entregão comum nessa relação. Tinha certo pra mim que não seria Levonor minha algoz mas, com essa ligação, comecei a me questionar.

"Ele sabe que você voltou escrever depois que ele apagou tudo" - ela disse com medo da minha reação.

Qual, como? Como eu podia me dar ao luxo que ele, com o palavreado arriscadíssimo que usei, me descobrisse? Pasmei com as possibilidades, ela o tinha dito e era preocupante.

Comentavam poesia, segundo ela, já uma cena alarmante, e ele dissera ter gostado um dia. Confessara, melhor. A poesia tinha perdido o ponto, tudo sobre o que se poderia ser lírico sobre, já se foi e nos restava esperar, agora, que morte nos fizesse essa última performance. 

Achei essa confissão, mesmo que indiretamente, a de que ele também fora poeta um dia. Seu Sereno vivia de meias palavras, era versado em entre linhas e silêncio. Fazia todo sentido, encaixando assim as coisas.

"Ele me pediu pra ler, então. Eu não sabia o que fazer e... até disse que não tinha internet boa suficiente pra abrir o Crônica mas ele me mostrou um celular que deixa ali guardado por emergência e o acesso é ótimo." - Oscilando a voz.

Interessante Seu Sereno ceder a uma leitura, era um avanço e ela também achou quando, lendo a crônica com certa dramaticidade, ele prestava muita atenção e mesmo entrevisto na sua cara fechada, tinha um pouco de orgulho que circundava ali. 

Problema, porém, foi depois: se retraíra todo e deu escusas  e saiu. 

Foi quando ela me ligou.

Ficamos em silêncio, ela culpada, pensativa dos e ses e eu, cá na segurança do longe, refletindo distante as consequências. 

Seu Sereno deu escusas. 

Seu Sereno deu escusas e saiu.

"Ele foi fazer o quê?" - eu disse, enfim

"Vou dar uma procurada" 

Coloquei, então o celular em viva-voz e deixei ele do lado, pelo encosto do sofá. Me deitei e fiquei observando esse absurdo que é se aborrecer por uma crônica inofensiva e o teto. Deve ter passado muito tempo nessa espera porque a tarde, de tranquilidade traiçoeira, traiu-me à tentação de terminar um assunto. Dormi com os sons da rua e só me dei por consciente depois de muito tempo.

Assustado e relapso, olhei o celular, que denunciava nenhuma anormalidade. A ligação tinha sido finalizada e eu não sabia há quanto tempo Levonor se fora e o que se passava com o velho Sereno. Tentei ligar de volta a todos os números disponíveis de Levonor, que agora, malgrado meu, não existem mais, diz uma telefonista.

Seu Sereno, longe demais pra que eu vá lá em pessoa ver o que se passa, também inexistiu o próprio número.

Agora lhes dirijo o foco e peço por ajuda; o que fazer?

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