CONVERSA FIADA >> Carla Dias >>


É apenas conversa fiada. 

Você está aqui para uma breve, porém inconveniente conversa fiada. Ela fiada nas cruzes fincadas em terras que você conhece somente por telas e manchetes. Por seus pés nunca terem pisado nelas, sentido a umidade deixada ali pela garoa, imagina que aquele lugar é um lugar nenhum, porque a distância é um ansiolítico eficaz para aqueles que preferem não se envolver com a realidade descabida.

Não estou aqui, com essa conversa fiada, para lhe culpar pelo o que seja. Eu mesma ando com algumas distâncias a tiracolo. Porém, elas são íntimas e remetem somente ao meu questionamento. Não é distância que me leva a observar tragédias como se elas não tivessem acontecido. Não é distância que me torna capaz de abraçar indiferença pela miséria do outro. Não é distância que me nega a ciência de que aquele lugar nenhum é um lugar ao qual também eu pertenço. 

Prepotência do ser humano achar que somos divididos em lotes. Quando tem de vir, o inesperado, o improvável, o intolerável ultrapassa as nossas imaginárias seguranças. Tolice do ser humano acreditar piamente que pode se proteger do inesperado, do improvável, do intolerável.

Aquela criança, barriga saliente por ser morada de vermes, os olhos esbugalhados de fome, ela não é um incômodo. O empresário envolvido em uma situação em que ser justo e honesto é cometer suicídio profissional, ele não é um incômodo.  A mulher que tem a violência como contrapartida de afeto, ela não é um incômodo. A distância que criamos dessas pessoas, ao transformá-las em personagens de um lugar nenhum; a distância que usamos como escudo para não aceitarmos a nossa própria fragilidade, não é um incômodo, mas uma escolha, e não das melhores. 

Ah, eu sei. Se essa não fosse uma conversa fiada modelo monólogo, uns gritariam, dedos em riste, eu não sou responsável por todo mundo!, e eu concordaria com eles. Ninguém é responsável por todo mundo, mas, pelo que me consta, na minha condição de ser humano, como todos os ditos imprestáveis, somos sim responsáveis pelo mundo. E, curiosamente, esse lugar reconhecido, o mundo, ele poderia muito bem existir sem nós, pessoas que jamais existiriam sem ele.

Semiótica, uns diriam. Delírio, outro contestariam.
Mas é conversa fiada, atrelada ao fato de que distância também serve de escudo, para o bem ou para o bem mal. É conversa fiada sobre o lugar nenhum onde habitamos, mas nunca que reconheceremos ser aquele o nosso código postal. Porque dividimos o mundo que somos em lotes, e alguns deles nós isolamos, que é para não contaminarem de verdades assombradoras a nossa existência.  

Porque precisamos de alegria... justo. Porque precisamos de oportunidades... definitivamente. Porque precisamos de apreço... sempre. 

Acontece de a distância destemperar a vida da gente, porque ela não é amiga, não. Ela nubla, defende também o que deveria nos inspirar. Distância cria a falsa sensação de que somos especiais, que valemos mais do que o menino de barriga saliente, que já nem sabe mais se chora por fome ou porque desistiu de existir. Mais do que o empresário que se vê diante da escolha entre ser honesto ou embarcar em fraudes, quando sempre acreditou que não existia essa escolha. Mais do que a mulher que vive sob a batuta da violência por tê-la por afeto.

Não sei vocês, mas não me sinto mais do que eles. Sinto-me alinhada a eles. Não sou mais, não sou menos. Sou também. E pode parecer bobagem essa óbvia observação, mas se trata de uma conversa fiada, então não é que eu esteja fugindo do assunto. Mas é que, ao observarmos o outro sem essa distância que cria muros, e nos torna estranhos no básico que a humanidade deveria compartilhar, faz sentido para mim não panfletar a dor do outro. Não tratar a tragédia dele como uma comédia a ser apreciada com profusa ironia. Nem mesmo desejar que ele, já exasperado de carregar a si mesmo, tenha de carregar a minha incapacidade de compreender que o mundo é o mesmo. As diferenças somos nós, as pessoas que criam distâncias, mas que, em momentos de legítima empatia, reconhecem-se no outro com respeito pelas suas batalhas. 

O enredo, meu caros, pode ser da autoria de cada um. O inevitável, ele é o que é... Uma possibilidade que cabe na realidade de qualquer um de nós. 

Encerrando a conversa fiada com um fio de esperança de que aprendamos a ser melhores do que acreditamos que somos.

Imagem: The Old Garden of Sorrows © Jan Toorop

carladias.com


Comentários

Felipe Santos disse…
Ainda farei um mural com todos os seus escritos lidos.Independente da temática,eles são sempre a materialização do que chamamos "nostágico", para mim, ao menos. Dos muitos que você recebe, meu sincero obrigado, drummer woman.
Anônimo disse…
Sempre um texto excelente. Sem fiar um fio sequer fora do rumo, ou do ritmo.

Enio- fã incondicional
Carla Dias disse…
Obrigada, Felipe. Fiquei muito feliz com o seu comentário, porque é sempre bacana alcançar alguém com meus escritos. Obrigada por me permitir isso.

Enio, já nem tenho mais palavras para agradecer tamanho carinho. Vou me ater ao obrigada!
Albir disse…
A naturalização do outro como incômodo acaba por nos transformar, aos nossos próprios olhos, em incômodos habitantes de lugar nenhum.
Carla Dias disse…
Albir, eu não poderia definir melhor.

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