OS ESPERANTES >> Zoraya Cesar

O restaurante funcionava no último andar de um prédio comercial – prestigiadas bancas de advogados; cassinos clandestinos para clientes classe AA; agências internacionais de detetives; médicos que cobravam mais de três mil reais a consulta; start ups de informática high tech; filiais de empresas off shore e outros movimentadores de dinheiro, nem sempre legais -, e ficava aberto 24 horas. Sua decoração era requintada, em tons escuros de madeira, mármore, ferro batido. As toalhas e guardanapos eram de linho, louça da Wedgwood, copos da casa Bormioli Rocco. Mais clássico, impossível.

Poucos sabiam de sua existência, parecia a fachada de um grande escritório. Mas era como um clube - com o já citado restaurante, sala de leitura e descanso, biblioteca - e dos mais reservados, frequentado apenas por sócios indicados por outros sócios. 

E quem eram essas pessoas? Se dissermos "qualquer um que...”, estaríamos incorrendo num erro de definição. Ninguém naquele clube poderia ser classificado como ‘qualquer um’. Eram especialistas renomados em seu métier, que podiam pagar as pesadas taxas de adesão e permanência e que primavam pela discrição. Porque discrição era a alma da sobrevivência. 

A mulher entrou, silenciosa e elegante.
Pediu duas xícaras de chá, mas sentou-se sozinha à mesa.
A quem esperaria?
Vejamos o homem sentado ao fundo, ao lado de pinturas originais de Ben Aronson. Trabalhava voluntariamente em asilos e orfanatos como dentista (tinha, inclusive, doutorado). Não seria daí, portanto, que viera o dinheiro para comprar o terno que usava, caro e de boa qualidade, feito sob medida para esconder a Wilson Combat EDC X9 que carregava no coldre axilar - mas de sua outra profissão: a de investigador particular atuando na contra-espionagem da indústria farmacêutica. Aguardava o barman trazer seu pedido. Que, ao contrário do que poderíamos supor, não era álcool, mas um singelo café, sem açúcar, por favor. E fatias de pão, bacon, salsichas grelhadas, ovos, morcela preta e branca, feijão com molho de tomate, batata e cogumelos. Um verdadeiro irish coffee. Talvez porque ele tivesse ascendência irlandesa; talvez porque o dia seria uma longa espera, e ele não saberia dizer a que horas poderia comer de novo; talvez porque comer devagar uma lauta refeição em um lugar seguro fosse um luxo raro, que não deveria ser desperdiçado. Um tanto quanto amargurado, pensou que, em vez de esperar o dia inteiro numa tocaia que podia dar em nada, bem poderia estar conversando com a estonteante loura sentada do outro lado do salão. 

Mesmo que não tivesse memória fotográfica, jamais esqueceria um rosto e um corpo como aqueles. Vira quando ela entrara, esbelta – não magra demais -, o rosto sereno, mas de expressão severa. Caminhava sobre saltos altos com a tranquilidade e elegância de uma gazela. A roupa era toda branca, um vestido que moldava seu corpo sem apertá-lo em demasia e um tailleur por cima (só mulheres de muita classe podiam se vestir inteiramente de branco sem estarem na frente de um altar, devaneou, inebriado pelo discreto perfume de magnólia que flutuava em volta dela). Não era nova. Não era velha. Tinha aquela capacidade rara de aparentar idade indefinida. Não trazia joias ou adereços e a maquiagem era básica. E discreta. Os cabelos, louros e fartos, que ele juraria serem naturais, estavam presos em um coque displicentemente armado. Uma lady, concluiu, com a certeza de quem já vivera muito e conhecera todo tipo de mulher. 

Seria uma advogada para uma grande empresa de negócios escusos? Uma jogadora, dessas que ganham pequenas fortunas no pôquer, em cassinos clandestinos? Uma espiã industrial? Amante de algum magnata? A quem esperaria? Sentada, sozinha, frente a duas xícaras de chá.

O pedido dele chegou. Sua mente desligou-se da misteriosa dama e voltou-se para seus próprios problemas. A vida, filosofou, era feita de esperas. 

Ela bebia em pequenos goles, segurando o pires, como se temerosa de quebrar a fina louça ao depositá-la de volta à mesa. Bebia e olhava a cadeira vazia à sua frente. Bebia e sentia um aperto no peito. Bebia e esperava. 

Esperava que Anthony aparecesse, que lhe dissesse que desistira da vida bandida, que largaria tudo para viverem juntos. Eles poderiam fazer isso. Ambos tinham dinheiro suficiente para se aposentar. Ainda eram jovens o suficiente para recomeçar. Inteligentes o suficiente para se adaptarem a qualquer lugar. Amavam-se o suficiente... Não. Talvez o amor não fosse suficiente. Porque Anthony não apareceu. 

E ela sabia que não apareceria mais. Que escolhera continuar a trabalhar para o homem que a agência dela perseguia. Que optara por largar dela de vez para ficar com o lado obscuro da vida, do lado contrário da lei. Ela deu um meio sorriso. De certa forma, ela também estava contrária à lei, pois a atividade de sua agência não era legalmente reconhecida. Mas há uma diferença, meu trabalho é pegar os bandidos que a lei não consegue alcançar porque as grandes forças econômicas os protegem. Eu trabalho por aqueles que não podem se defender. Anthony protege aqueles que podem. Nós, as águias. Eles, os abutres. 

Algumas poucas lágrimas caíram no chá, salgando a bebida. Dessa vez, ela pôs a xícara na mesa, secou o rosto com dois tapinhas rápidos e certeiros, não deu tempo sequer de estragar a maquiagem. Então era isso. Nada de viver no Tahiti ou numa vila espanhola. Nada de plantar oliveiras na Toscana ou fazer excursões ao Alasca. Não. Ela continuaria a trabalhar. Pois gostava do que fazia e somente um amor poderia fazê-la renunciar à sua vocação. Estava cansada, verdade. Mas tiraria umas férias e voltaria à ativa. Recostou-se no espaldar da
Gerber Ghostrike, uma das facas
mais mortais do mundo,
perfeita para usar disfarçada sob a roupa.
Para a loura que pedira o chá,
as facas, não os diamantes,
eram as melhores amigas
de uma mulher
cadeira e sentiu a pressão reconfortante da lâmina de sua Gerber Ghostrike presa às suas costas. Dentro do casaco, sentiu o peso de suas facas de arremesso preferidas, as Smith and Wesson SWTK10CP. Companheiras perfeitas para uma mulher que tinha por profissão caçadora de recompensas, que andava por lugares que o comum das gentes nem imagina existir, que tinha, muitas vezes, de se infiltrar entre bandidos, e de, literalmente, lutar pela própria vida. Quem tem facas assim não precisa de joias (teria ela lido os pensamentos do homem que a observara entrar?). Quem tem um emprego como o meu não precisa de Anthony. 

E, resolutamente, tomou, sozinha, toda a outra xícara de chá. Sua espera chegara ao fim. 



Quadro: Woman drinking tea - Ben Aronson
Foto Gerber Ghostrike: pinterest.com/pin/246642517069165456/

Fontes:
Smith and Wesson SWTK10CP
https://hiconsumption.com/2014/09/best-throwing-knives/

Gerber Ghostrike Fixed Blade Deluxe
https://gearmoose.com/best-fixed-blade-knives/

Wilson Combat EDC X9
https://www.fieldandstream.com/best-concealed-carry-handguns#page-8 wilson

Comentários

Unknown disse…
Hein? Como assim? Tabô? Ahhhhh. Nem vai ter segunda parte? Snif
essa surpreendeu... mas tb sinto um gostinho de quero mais...
Marcio disse…
O sujeito sentado ao fundo teve muita sorte. Se o texto prosseguisse, ele certamente morreria - ou esfaqueado pela loura fatal (literalmente), ou por congestão, depois desse Irish coffee.
Embargos de declaração para a autora: esse clube tão exclusivo permite a entrada de gente armada em suas dependências?
Albir disse…
Acho que está nascendo uma justiceira. A descrição é de quem vai brilhar. Aguardemos.
Zoraya Cesar disse…
Unknown e Ana: obrigada!!! vcs me estimularam a fazer uma nova história com esses dois personagens. Mas, nessa, a espera deles terminou...

Marcio: hahahaha, vc sempre faz comentários engraçados. Bem, o sujeito não morreria, ele tem consciência de q todos os frequentadores apresentam algum tipo de letalidade e ele, como sujeito inteligente, toma conta da própria vida. Qto ao clube, ele existe especialmente para esse tipo de pessoas, que, sabidamente, não andam desarmadas. Seus embargos nao foram conhecidos kkkk.

Albir: amém às suas palavras e obrigada!

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