ENLEVO >> Carla Dias >>


Percebe-se em êxtase.

Porque nele tudo vibra, de dentro para fora, até o ar lhe falta. Ao tentar retomar o fôlego, os lábios são inundados por uma saudade reverberante pelo nem sabe o que ou quem. Saudade que lhe cutuca o choro. Dá um desamparo que ele não reconhece. 

Não é saudade do beijo, mas sim do passeio, onde o tempo se torna macio, de maciez que poucas coisas – e pessoas – têm nessa vida.

Até há pouco, sentia-se certo sobre a capacidade de dominar sentimento. Não havia emoção que lhe fizesse desandar a racionalidade, que o arrastasse aos confrontos sobre temas desconhecidos. Ele sempre foi de cuidar do modo como reagia às coisas, aos acontecimentos, às pessoas. O que acontece agora é um desatino, um desvio de rota.

Percebe-se em êxtase. Não do êxtase moldado às buscas que escolheu, tampouco do que prenuncia conquista mediante esforço. Está habituado a receber afeto feito pagamento por ações. Compensação ele entende e aprecia que ela seja controlável. 

Não isso... não o que lhe toma nesse momento.

Porque agora tudo nele se desloca, mudando a configuração do seu autoconhecimento. Fragiliza-se diante da impossibilidade de definição... de definir-se.

Percebe-se em êxtase. Não de êxtase explicável em frases curtas, quando compartilhando conquista digna de ser panfletada. É do que não termina no corpo, como todo êxtase que já conheceu. Não evapora depois do gozo. Não se desaloja do dentro, segundo seguinte ao grito-deleite.

É como se o êxtase o tocasse constantemente, fazendo da geografia da sua carne um parque de diversões.

Porque agora ele soa convincente, seduz os seus sentidos, domina suas querenças. Faz com que ele ignore avisos, ultrapasse limites, remodele regras. Sente-se de espírito maleável, na verdade, quase salaz.

Tudo nele se indispõe com quem ele tentou se tornar. Do que ele tentou esconder.

Porque veio a vida e o abrasou. 

Percebe-se não identificado, abruptamente rendido ao inexplicável. Permanece a sensação de que a vida não será a mesma. Nada será o mesmo. 

Ele não é mais o mesmo.

Imagem: Pleiades © Max Ernst


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Comentários

Albir disse…
Enlevo é o sentimento, a um tempo, do seu personagem e do seu leitor.
Carla Dias disse…
Obrigada, Albir. :)

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