PAI, PERDOA-LHES - final >> Albir José Inácio da Silva
(Continuação)
Quando ouviu pela primeira vez a
promessa de liberação de armas, não teve dúvidas, decidiu ali o seu voto. E fez
campanha, distribuiu santinhos, ensaiou mesmo alguns discursos em nome do
direito à legítima defesa para os que viviam ameaçados, “já que os bandidos
tinham armas e o cidadão de bem, não!” E veio a vitória e a posse. A vida ia
mudar, teve certeza.
Mas estava demorando a mudar. Ainda
em Janeiro, Amâncio perdeu o emprego. Lá também começaram a chamá-lo de Amanco
e ele explodiu. “Por sorte”, pensou, “já tinha juntado o dinheiro para realizar
o sonho”. Não um revólver qualquer,
raspado, comprado da mão de criminosos – criminosos que mataram seu pai! Queria
uma arma honesta, com registro, autorização, que não precisasse esconder e de
que pudesse se orgulhar como faziam os antigos com o relógio de estimação.
Nem por um momento, Amâncio achou
que teria problemas na aquisição. Puxava do bolso, orgulhoso, uma carteira
profissional com várias anotações de trabalho e nenhuma demissão por justa
causa. Se alguém podia ser considerado cidadão de bem, era ele. Cheio de
dignidade e espírito cívico, dizia a todos que em breve ia “buscar a sua”.
Cansada de tanta violência, Dona
Rute peregrinou por dezenas de igrejas procurando algum alívio. Até que encontrou
o reverendo Elias. Pela primeira vez sentiu paz. Nada de ameaças de inferno, miséria
ou doença se não fizesse o que o ungido mandasse. Nada de bugigangas a serem
adquiridas em troca de prosperidade e saúde. Nada de preconceito e ódio contra
os diferentes, os gays, a gente amiga que acreditava em outras coisas. Nada de
“colinha” com nomes de candidatos pro dia da eleição sob pena de castigo divino.
Só amor, perdão, aceitação, acolhimento. Não importava ali quem você era, de
onde vinha, como se vestia, com quem namorava, se já tinha sido preso, se usava
drogas. Se queria encontrar outros sofredores e talvez chorar junto, ali era o
seu lugar. Tudo o que ela precisava e procurou a vida inteira.
Por sugestão do Pastor Elias,
Dona Rute tratou de tirar Amâncio de casa. Ele foi morar com uma tia, longe da
favela e próximo da nova igreja. Nova igreja que era parte da estratégia da mãe
para proteger o filho. E ele ia precisar muito de estratégia e proteção.
Porque o conceito de “cidadão de
bem” não é assim tão simples como sonha a vã filosofia de Amâncio. Envolve
coisas como ocupação, domicílio, sanidade, classe, cor e dinheiro para comprar
um “cofre onde o armamento possa ficar em segurança”. A Polícia Federal negou o pedido. E Amâncio
mergulhou na mais profunda depressão.
Não saía mais de casa e não
queria ver ninguém. A mãe, paciente, ia visitá-lo todos os dias e, depois de
muito insistir, conseguiu levar o Reverendo Elias. A contragosto, Amâncio
escutava.
A palavra perdão lhe pareceu a
princípio muito estranha. Tanta mágoa, tanta dor, como era possível perdoar
pessoas tão más? E se perdoasse, isso mudaria as pessoas? Como setenta vezes
sete? Era pra passar a vida perdoando? Amor? Como amar os inimigos?
Palavras incompreensíveis e
inacreditáveis, mas a voz suave e calorosa do Reverendo foi quebrando as
resistências. Amâncio já ansiava pelas visitas, lia os trechos indicados e
começou a frequentar a igreja.
A vida ganhou sentido. Amor e
perdão eram a nova maneira de enxergar o mundo, sem rancor, ódio e desejo de
vingança. Quase não acreditava que isso estava acontecendo. Seu rosto ganhou um
sorriso que nunca tinha usado antes. Passou a acompanhar o reverendo nas
visitas a outros aflitos, contava suas experiências e emocionava os ouvintes.
No domingo, depois da igreja, Amâncio
apareceu na porta da birosca do Zé Maria.
- Zé Maria, eu vim conversar com
você!
- Pode falar daí mesmo, ô Amanco!
– troçou ainda uma vez o Zé Maria, abrindo a gaveta.
Em vez de falar, Amâncio enfiou a
mão na bolsa a tiracolo que agora carregava. Nem ouviu o
estampido. A mão esquerda soltou a bolsa,
que deslizou de lado. A direita apareceu, segurando a Bíblia com força. Os
joelhos se dobraram devagar numa quase oração. E ele tombou de lado como um
santo.
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