LUZ E FOME >> Albir José Inácio da Silva
No princípio o que não mata
engorda. No princípio tem que matar pra comer. Matar o dente-de-sabre, o
mamute, o unicórnio, a preguiça e o jacaré. Matar o próximo também que a
proteína é pouca e é melhor comer que ser comido.
Não existe ódio ainda, apenas
fome.
O ódio surge depois por causa das
diferenças: famílias diferentes, tribos diferentes, deuses diferentes, raças
diferentes. E nunca mais ele foi embora.
Foi então que a luz apareceu lá
na Grécia: convivência, ágora, virtude, bem-comum, ética, beleza. Passou por
Roma e chegou a Belém de Judá. E os crentes já não queriam matar os inimigos,
antes convertê-los ao bom Deus.
E aprendem amar o próximo, orar pela
sua saúde, dividir o pão e a fome, a dor e o gozo, a colheita e a praga. Cuidar
dos filhos que não são seus e acolher o estrangeiro. Estender a mão e levar a mensagem
de paz e amor aos quatro cantos do mundo.
Mas vem a noite de mil anos. Fome,
peste, tortura e morte na fogueira em nome da cruz. Grilhões, impostos,
primícias e maldições em nome da luz. O rei é divino, a fartura é na corte, a
dor é nos campos e nas masmorras.
“O Estado sou eu! Fome? Comam
brioche!”
Acendem-se novas tochas:
liberdade, igualdade, fraternidade. Comida pra quem faz o pão, terra pra quem
planta, agasalho pra quem tece. Justiça pra quem precisa.
Há fome ainda, mas há também
esperança.
Mas que sombra é essa? Eclipse? Não.
Parece ódio em estado puro, gratuito. Ódio pela diferença, pela procedência.
Ódio que entorpece, que festeja a morte e comemora o sofrimento. Guetos,
câmaras de gás, corpos, bombas, fogo, escombros.
Apocalipse.
Ainda fumegante, a Terra de novo se
ilumina. Acolhimento, solidariedade, resiliência, reconstrução. Assombro. Horror à guerra, à fome, à
xenofobia. Esperança, inclusão, direitos humanos, nações unidas. Tratados de
paz.
Ficou pra trás a escuridão?
Há uma luz piscando. Amarela. Tem
gente que quer o próximo distante se o próximo é diferente. Tem gente que aponta o dedo acusando, aponta
a arma, aponta o dedo-arma ameaçando. Há os que distribuem balas em vez de pão
e os que semeiam ódio no lugar de livros.
Não é assim que nascem as trevas?
Nesse ritmo, em novas noites de
São Bartolomeu, vamos devorar o próximo em nome de Deus.
Antes ele do que eu?
Comentários
Belíssima crônica!