O ÚLTIMO JANTAR ROMÂNTICO >> Zoraya Cesar

Claudia acordou de um sono profundo, olhou o relógio, duas horas da manhã. Levantou, foi à cozinha, tomou um copo de água, passou no banheiro, fez pipi e voltou para o quarto. Deitou e dormiu. Acordou de novo, olhou o relógio, duas horas da manhã. Como assim? Levantou, foi à cozinha, bebeu água, mas não encontrou o banheiro. Devo estar sonhando, pensou, vai ver vou fazer pipi na cama. Deitou e dormiu.

Acordou, mais uma vez. Olhou o relógio. Duas horas da manhã. Tsc, acerto esse treco assim que amanhecer. Ainda cheia de sono, levantou e... não foi à cozinha, sequer conseguiu sair do quarto. Procurou pelo interruptor. Não encontrou. Nem as paredes, nem a porta, muito menos o celular. Meu Deus, o que está acontecendo? Não enxergava nada, a escuridão absoluta só era quebrada pelo écran vermelho do relógio digital, a refletir as mesmas duas horas. Gemendo de medo, e a muito custo, conseguiu encontrar a cama. Deitou, e percebeu, surpresa, um estranho odor de velas recém-apagadas e flores passadas. Vou tentar dormir, deve ser um pesadelo provocado pela bebida que tomei ontem. 

Ontem... Paulo estava tão romântico. Nem parecia o mesmo homem belicoso e irracional que pleiteava mesada e metade dos bens como garantia de que ela o amava de verdade. Era o Paulo de antigamente, por quem se apaixonara. Depois de dois meses afastados, resolveram tudo pacificamente, e reataram. Poucas mulheres resistem a um homem penitente e arrependido. Claudia era uma dessas. Fizeram amor. Transaram. Tiveram sexo. Ele ainda me ama, pensou, do contrário, não teriam aquela noite de reis. Dormiu. E acordou de novo. Mesmo ressabiada, olhou o relógio, duas horas da manhã. Tudo estava ainda muito escuro, mas, confiante de que o pesadelo  terminara, levantou, decidida a sair do quarto.

Não, não levantou. Estava imobilizada, como se encaixada num recipiente do tamanho exato para seu corpo. As mãos estavam cruzadas sobre seu peito e havia algo estranho em suas narinas. Claudia começou a gritar desesperadamente, mas nem ela mesma ouviu sua voz.

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Alguns conhecidos e amigos se espalhavam pelo salão, atônitos e sussurrantes. Como é a vida, não? Num dia linda, rica e feliz, depois, morta, literalmente da noite pro dia. Cochichava-se, aqui e ali que ela bebera muito, irresponsavelmente, aliás, por conta dos remédios – psiquiátricos e renais – que tomava. Mas gente feliz não raciocina, reprovavam, entre si, sacudindo a cabeça, onde já se viu, morrer desse jeito - como se a morta tivesse culpa por sua própria morte, como se estar feliz fosse crime. Que pena, né, logo agora que eles voltaram às boas... E que sorte que um médico amigo do Paulo tenha conseguido agilizar todos os trâmites hospitalares e burocráticos, quanto mais rápido o enterro, menos sofrimento pro coitado, olha lá, se acabando de chorar num canto do salão! Se não fosse esse amigo, talvez a pobre Claudia nem fosse velada naquele dia, pois houvera um grande acidente na cidade, com muitos mortos e feridos. Os médicos, atarefadíssimos, não poderiam perder tempo com alguém que morrera de um simples ataque cardíaco às duas horas da manhã. 

Na morta, mesmo, ninguém prestava muita atenção. Ou veriam que o rigor mortis dera à sua face uma estranha expressão de espanto.

Depois de o caixão ser fechado e o corpo entregue ao seu novo lar, Paulo recebeu as condolências, compungido e choroso. Sim, respondia, estive com ela, mas saí cedo, ela estava viva e bem, nós nos amávamos, íamos voltar, não sei o que fazer de minha vida...

Até, que, finalmente, todos foram embora, deixando que os mortos enterrassem seus mortos.

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Sozinho, o cínico Paulo brindou à própria astúcia
Sozinho, Paulo comemorava com uísque o sucesso de seu plano perfeito. Convencer a ingênua Claudia de que estava arrependido e ainda apaixonado, embebedá-la de álcool e sexo depois do jantar, e, antes de sair do apartamento, injetar-lhe cloreto de potássio na veia do pé, para o furo ficar bem escondido. Seu amigo médico - na verdade, seu amante - lhe forneceria o álibi perfeito. Sendo viúvo de Cláudia, em breve todo o muito dinheiro que era dela seria seu. E eles poderiam sair do país e viver juntos. Pensou na mulher, sem arrependimento algum. Tivesse ela me dado o que eu queria, nada disso seria necessário. E bebeu mais uma dose.

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Felipe Espada leu sobre o caso nos jornais. Uma pequena nota, que quase lhe passou despercebida, tão discreta era, no meio das notícias, comentários, análises especializadas sobre o deslizamento do morro que matou, desalojou e feriu tantas pessoas.  

Mulher sofre parada cardíaca durante o sono após reatar com marido.
Claudia Mirim morreu em casa há duas noites, depois de um jantar romântico de reconciliação com o marido. Claudia era última herdeira da rica família Mirim, da indústria moveleira. O marido, Paulo Antonio, funcionário licenciado do Banco do Brasil, ficará com todos os bens. Amigos relatam que ele está sob o efeito de sedativos devido ao choque e blá blá blá. 

Felipe Espada leu, releu e achou tudo muito estranho. O enterro rápido, a liberação do corpo em tempo recorde pelo hospital, o laudo da necropsia mal elaborado (pois não levantou suspeitas nem levou o tempo hábil), um álibi frágil – ora, não havia câmeras de segurança que confirmassem os horários alegados e, pelo Bom Pastor, quem sai de um jantar romântico com a esposa e vai para a casa de um amigo, tarde da  noite, para tomar cerveja? Por que não passara a noite com ela?

Hercule Poirot¹ dizia sempre ‘cherchez la femme’². Mas ele, Felipe Espada, por mais que admirasse o detetive belga, tinha outro motto: “find the monney”³. Onde estivesse o dinheiro, ali, também, o principal suspeito. Que poucas vezes era o mordomo. 

No dia seguinte tomaria algumas providências. Há muitas maneiras de se induzir um ataque cardíaco e forjar uma morte natural. Ele sabia que havia meios de se encobrir um crime. A injeção de cloreto de potássio, por exemplo, a 'morte branca', assim chamada por não deixar vestígios. Mas não existia crime perfeito para um investigador tenaz como ele. E se havia algo que tirava seu sossego era um assassino impune. Sim. No dia seguinte ele iria investigar aquele caso.

¹ detetive mais famoso criado por Lady Agatha Christie
² procurem pela mulher, em tradução livre
³ encontre o dinheiro, em tradução livre

Foto Freepik</a>homem-levantamento-brinde-com-copo-uisque-ligado-bokeh-fundo_23-2147861936

Pessoal Querido, saio de férias, volto em dezembro. Fiquem bem e, por favor, sintam saudades. 

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Comentários

Unknown disse…
E vivas ao retorno no Felipe espada! Coitada da Claudinha, tão tolinha...
Felipe Espada!!!!! Ah, meu ídolo, perseguidor dia criminosos que acham espertos, que saudade eu estava de você! Pega esse malandro e encarcerar, já tem muita gente impune por aí
Marcio disse…
Não fosse a crise que atravessa a imprensa escrita, jamais um obituarista teria espaço para descrever em tamanhas minúcias as circunstâncias da última noite de vida da sofrida Cláudia Mirim.
Graças a essa crise, Felipe Espada pôde iniciar sua investigação.
Que seja bem sucedido.
Creio que, ao cabo das apurações, descobrirá um triângulo amoroso entre Paulo, o médico e o obituarista do jornal - que só publicou tudo para incriminar seu rival médico, e ainda chamar a atenção do Felipe Espada, sua paixão reprimida.
sergio geia disse…
Zoraya, a primeira parte de seu conto, hein?, que coisa doida! Me tirou o fôlego. Boas férias! E volte logo com essas delícias. Bjs!
Clarisse Pacheco disse…
Ele voltou!!! Salve meu herói noir!!! Já ansiosa pela segunda parte...

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