ARMAS, ATROPELOS E BRAZÕES >> Albir José Inácio da Silva
Ouviu os primeiros acordes do
hino nacional. Queria descer correndo os nove andares, mas conteve-se esperando
o elevador e conferindo no espelho o patriotismo da faixa na cabeça, da camisa
da CBF e do xale de bandeira brasileira.
Já tinha se conformado a assistir
da janela como das outras vezes, agitando a bandeira, àquele auto de fé e civismo.
Não tinha coragem de deixar sozinho o seu Duque, querido e manco, que a
maledicência da vizinhança dizia ser retardado. Mas a presença da diarista
naquele dia salvou a sua passeata.
“Você vai ficar sentada, Lurdinha,
só cuidando do Duque! Não precisa fazer nada!”
O Duque recebeu esse nome para
encarnar as duas paixões de Leopoldina: a glória de Caxias e a dignidade da
nobreza.
Ao exército de Caxias devia tudo
que era e tudo que tinha. Seu pai chegou rapidamente a coronel nos tempos da
gloriosa revolução, tão caluniada pelos vermelhos. Até hoje ouve boatos sobre a
atuação do Coronel Diamante nos interrogatórios. Esse era o agradecimento pelo
rigor com que tratou os inimigos da pátria!
Mas o pai deixou-lhe ainda outro motivo para
venerá-lo: pensão vitalícia enquanto permanecesse solteira. E quem precisa de
casamento com uma pensão dessa? Bastava-lhe o Duque.
Quanto à nobreza, Dina – como era
conhecida - se julgava descendente. Mesmo que o galho genealógico não se tenha confirmado
na direção da Arquiduquesa da Áustria, a Imperatriz Dona Maria Leopoldina, “Coincidências
não existem, este nome não é à toa”, dizia.
Na Avenida Atlântica, milhares de
pessoas vibravam ao som do hino nacional. “Brasil um sonho intenso, um raio
vívido...”. Dina acompanhou os intervencionistas, estendendo o braço direito
com a mão espalmada para baixo na direção do general que, nesse momento,
prestava continência de pé sobre o jipe. Talvez não fosse exatamente um
general, mas era com certeza alguém
imbuído de generalismo.
No caminhão que vinha logo atrás
dos militares, outra de suas paixões: o Príncipe herdeiro - um legítimo Orléans
e Bragança. Ele acenava e jogava beijos. Dina ainda se perguntou se não seria quebra
de protocolo, atirar beijos durante o hino. “Mas o Príncipe é o Príncipe”,
acalmou-se.
Não podia mesmo perder aquele
momento histórico por causa de sua neurose com o Duque!
Lurdinha colocou na máquina uma
cápsula de capuccino. Depois sentou-se na cadeira-do-papai com a xícara na mão
e os olhos fechados. Essas palhaçadas de passeata costumam demorar e ela
esperava estar na hora de ir embora quando a velha chegasse. Paz.
Mas o café pediu cigarro e ela se
levantou. Nem pensar em fumar ali dentro que a doida era neurótica com fumaça e
reclamava do cheiro até no seu cabelo. Saiu pela porta da cozinha, empurrando o
Duque com a perna. Fechou a porta atrás de si e acendeu o cigarro, enchendo os
pulmões de felicidade.
Barulho de alguma coisa caindo do lado de dentro. Lurdinha
abre uma fresta, mas não consegue ver o cão. Abre mais e enfia a cabeça. Ele
surge de repente, embarafusta-se entre as pernas dela, que recua. Bem a tempo de
ver uma mancha preta se precipitar pela escada de serviço.
Lurdinha engasga com a fumaça enquanto
desce os degraus tentando alcança-lo. “Maldito cão do inferno!”, blasfema.
Cinco degraus à sua frente, o cachorro tropeça, rola dois ou três degraus, se
apruma de novo e torna a cair e torna a rolar. Agora já são oito degraus de
diferença. Ganha terreno com essas quedas e rolamentos, enquanto ela tenta
descer de dois em dois degraus. Arqueja, mas está confiante: do portão ele não
passa!
Mas o maldito do Zeca segura o
portão com o corpo enquanto joga charme pra cima da piriguete que trabalha no
401. Ele olha assustado e sem entender os gritos da Lurdinha. Enquanto isso o
Duque passa entre suas pernas e ganha a calçada.
No calçadão Dina não pisca,
coração batucando ao ritmo do hino. Agora o trecho que ela mais gosta: “Mas se
ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem
teme quem te adora a própria morte, terra adorada...”
Mas, mãe é mãe. Primeiro aquela
sensação ruim de que algo pode estar acontecendo. Depois ela reconhece a voz do
filho entre dezenas de outras. O latido rouco e cansado do Duque foi sentido
antes que ela pudesse vê-lo.
Saindo do meio de centenas de
pernas Duque desce o meio-fio, mancando na direção de Dina parada do outro lado
do asfalto.
- Para! Para! – grita Dina com
todas as suas forças, mas o general não ouve, o jipe não para e Duque corre,
tropeça e cai sob a roda.
Dina cai de joelhos.
Duque ainda se mexe. O caminhão
do Príncipe se aproxima. Sem saber de onde retira forças, Dina grita de novo.
- Para! Pelo amor de Deus, para!
A nobreza continua avançando como
se a vida de uma súdita não estivesse no asfalto. Lá sobre os carros estão seus
heróis, supremos e majestosos, quase deuses, sem ao menos se dar conta de sua
desgraça.
Dina desmaia.
Na barraca de socorro médico, ela
tem de ser contida em seus delírios. “Para meu General! Para meu Príncipe!”, balbucia,
antes que a paz diazepínica se espalhe pelas suas veias.
No domingo seguinte, a passeata é
outra. Sem brasões, sem fardas e sem clarins. Mas lá está Dina na comissão de
frente gritando palavras de ordem, “DITADURA NUNCA MAIS”, enquanto soca o ar
com o punho esquerdo fechado acima da cabeça.
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