ELUCIDAÇÃO DIVAGANTE >> Carla Dias >>


Tem prédio sendo construído logo ali. Tenho nada contra prédios, eu moro em um. Só que acontece de eu achar que uns e outros se assanham com a ideia de tocar o céu. E aquele céu, aquele no qual o meu olhar costumava se aconchegar, transforma-se, rapidamente, em janelas. Janelas que darão para ouras janelas.

Falta modéstia aos prédios.

De uns dias para cá, pessoas que conheço e estimo vêm comentando seus feitos comigo. Algumas me pediram para ajudá-las com eles. Eu gosto de ajudar. Há livro sobre a morte sendo escrito com apreço à vida, porque lida com problemas que são bem difíceis de encarar, ao observarmos alguém que amamos partindo aos poucos. Há música sendo composta em homenagem a sentimentos profundos e genuínos, que provavelmente nunca se transformarão em declaração desmascarada. Há personagem criado em imagem que se embrenha em sonhos e poesia.

Há projetos sobre assuntos com os quais nunca flertei, mas neste caso, o importante é a conversa para aliviar a pressão da pessoa e afinar o olhar dela a respeito de sua própria busca. Há pessoa que se encontra nesse lugar de reflexão sobre se encontrar em uma nova profissão, e que busca, entre desapontamentos e sustos, mas com uma disposição e gentileza com a vida que me emociona, um amor para renovar sua capacidade de amar.

Há pessoa a ruminar desejo de mudança, mas sem declará-lo escancaradamente, sequer assumi-lo com propriedade. No humor sarcástico, busca pelo caminho que a levará a essa mudança, sem estardalhaço. Tenho a impressão de que, em breve, ela compreenderá que a mudança que busca é muito mais profunda e significativa, e que ela será bem barulhenta. Mais do que isso, ela será inevitável.

Paralelamente aos projetos desses meus afetos, há os meus próprios. Confesso que os troquei por algumas séries e filmes antigos. Que o Netflix tem suprido minha necessidade de me ausentar deles. Há tanto a ser feito, decidido, tocado adiante, mas sinto como se a melhor coisa a se fazer, nesse momento, seja abraçar uma pausa e esperar.

Abraço dado.

Espera em andamento.

Há prazos, urgências. Há caos, geral e pessoal. Há questionamentos escandalosamente indesejáveis, mas fundamentais. Muitas coisas boas aconteceram nesse ínterim, e tenho consciência de que elas têm me ajudado a não só repensar o que julguei impossível de ser questionado, mas também a compreender a brevidade da vida. Claro que a leitura de um livro aí vem me ajudando nessa reflexão que já vem acontecendo há algum tempo: somos um quase nada diante do tudo do qual participamos.

Mudanças acontecem o tempo todo, quase todas à revelia dos nossos desejos. Acontece de sonhos serem mudanças necessárias que cobiçamos em segredo, e por conta de serem segredo, pelo nosso medo de não funcionarem a nosso contento, não ganham voz, espaço, realização. Há quem seja capaz, vez ou outra, de prever o futuro do outro, ao colaborar com as realizações dele.

O que espero que nunca mude é a minha disponibilidade em escutar aos meus afetos sobre suas jornadas. E de, às vezes, colaborar com elas. E de que minha honestidade nesse processo jamais se esgote, apenas porque ela se sentiu cansada de se repetir. Há tanta beleza nas buscas. Há tantas descobertas. Não importa se sejam minhas ou daqueles que me cercam.

Estou na a torcida para que chegue logo ao Netflix a próxima temporada da série Marcella. Que eu consiga escrever aquele livro no prazo. Que eu seja capaz de não me perder ao explicar, mais uma vez, que a minha essência é a mesma, o que mudou, e sempre será passível de mudança, é a forma como eu aprendo com a vida e me exponho a ela.

Tenho passado um bom tempo observando os andares daquele prédio serem erguidos. As janelas dele, em breve, impedirão meu olhar de alcançar aquele céu de sempre, que me encanta, enquanto o observo entre um gole de café e uma lida na próxima página de um livro.

Ao observar a mim como uma ínfima parte de uma história que tem nada a ver com meus desejos pessoais, acabo por perceber que há prazos, mas nem todos eles merecem ser cumpridos. Há urgências, mas nem todas realmente são urgentes. Há caos, mas que eu até me viro bem ao encará-lo.

Sobreviverei a mim e aos prédios em construção.

carladias.com

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