O QUE VOCÊ FOI QUANDO ERA CRIANÇA >> Fernanda Pinho



Os adultos e essa urgência sem sentido insistem em questionar às crianças sobre o que elas querem ser quando crescer. Era assim quando eu era menina e continua sendo (vira e mexe eu mesma mando a famigerada pergunta para algum pequeno diante da falta de assunto). Eu quis ser apresentadora de TV (a Xuxa, pra ser mais exata), juíza de direito (achava o supra sumo do poder bater o martelinho) e jornalista (que é o que eu acabei virando mesmo). Embora tivesse resposta, sempre respondia meio entediada, devido à obviedade e à constância com que a pergunta surgia. 

Ontem, porém, parada num engarrafamento, com a cabeça dando voltas em bobagens que de tão bobas viram grandes problemas, fui surpreendida com o reverso da pergunta. O anúncio na traseira de um ônibus questionava: "O que você foi quando era criança?”. Interessante indagação que depois descobri ser o nome de uma peça de teatro.

Viajei. Quando criança fui Princesa da Pipoca na festa junina. Fui filha única. Fui louca para ter uma irmã. Fui irmã mais velha ciumenta. Fui fanática pela Xuxa. Fui uma exímia pianista em meu pianinho de cauda. Fui a feliz proprietária de uma Ferrari (Da Barbie). Fui ratinha de praia. Fui comilona (No nível: todos os problemas de saúde que tive na infância estavam relacionados a comer demais). Fui a menina mais alta da classe. Fui da classe dos não-alfabetizados. Fui superprotegida e superamada pelos meus pais.

Quando criança eu fui aquela menina que achava que o He-Man e a She-Ra eram um casal. Que tubarão era macho de baleia e que ladrão não era gente (Ficava verdadeiramente aterrorizada quando alguém dizia que “um ladrão entrou na casa da vizinha”. Logo imaginava a casa sendo invadida por um espectro vindo de outro planeta. Quando descobri que era gente mesmo, fiquei mais aterrorizada ainda). Fui a aluna sempre escolhida pra ser índia nos teatrinhos sobre a colonização. Fui aquela menina que dava tudo o que tinha para as amigas (Quantas broncas eu levei por voltar para a casa sem meus estojo de maquiagem, sem minhas canetinhas, sem a pasta de papéis de carta, sem minhas figurinhas). Que chorava quando assistia Carrossel porque o Mario Ayala não tinha mãe e oferecia carona para a professora depois da aula, fazendo o pai dar voltas quilométricas. Fui boa. Mas também fui aquela que por milésimos de segundo não tascou um guarda-chuva na cabeça da irmã bebê, a que fez o primo mais novo cheirar amônia e a que jogou o outro primo na piscina (e tapou a piscina com uma lona). Fui a menina que dizia que a cor preferida era verde só para ser “alternativa”, já que a maioria das outras meninas preferiam o rosa ou o laranja. Fui aquela que falava tão alto que a mãe teve que levar ao médico pra verificar se não tinha problemas de audição. Tinha nada, só queria chamar atenção.

Fui a Nêga do meu pai. A Loló dos meus tios. A Magali da minha tia. E a Nanda de todo mundo. Fui Cláudia ou Márcia em todas as minhas brincadeiras de casinha porque achava que chamar Cláudia ou Márcia e fingir que fumava um cigarro era a coisa mais adulta do mundo. “Ai, menina, nem te conto”, e dava uma dramática tragada no lápis de cor branco que não servia pra nada mesmo. Fui uma leitora interessada desde que aprendi a ler e compositora desde que aprendi a escrever. Escrevia as letras e inventava a melodia ao mesmo tempo em que gravava a música em fitas K7. Fui defensora da minha irmã, a grande companheira da minha mãe e xodó do meu pai. 

Fui sendo isso, sendo aquilo, até chegar no que sou hoje, um emaranhado de definições que a vida adulta nos exige. Mas de todas as que cabem a mim, eis a minha preferida: sou uma nostálgica incorrigível, resultado de uma infância danada de boa.

Comentários

Anônimo disse…
Relembrar o passado é algo nostálgico,, todavia,, volta-se memorias plausiveis
Zoraya disse…
Que delícia de texto, Fernanda! Beijos
Unknown disse…
Que texto lindo! Sou uma eterna nostálgica... ♥
Carla Dias disse…
Que beleza de texto, de depoimento!
Unknown disse…
Mas olha eu aqui denovo haha, ótimo texto, Carla!

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