A MÚSICA DISSE... >> Carla Dias >>


Minha mãe cantando para nós, os filhos, enquanto lava a louça: “Derrubei pau a machado/ E o mato fino rocei/Depois que o mato secou/Eu botei fogo e queimei”, melodia triste, letra ainda mais triste. Ainda assim, uma lindeza. Meu avô lá na sala, lustrando o seu sapato: “Acorda, Maria Bonita/ Levanta e vai fazer o café/Que o dia já vem raiando/E a policia já está de pé”.

“Marmelada de banana/Bananada de goiaba/Goiabada de marmelo/Sítio do Pica-Pau-Amarelo”, e a minha avó cozinhando feijão no fogão à lenha para o jantar, em tempo de, depois do Sítio, assistir à novela: “Vida de negro é difícil/É difícil como quê/Eu quero morrer de noite/Na tocaia me matar/Eu quero morrer de açoite/Se tu negra me deixar”. Lerê, lerê.

“The warden threw a party in the county jail/The prison band was there and they began to wail/The band was jumpin' and the joint began to swing/You should've heard those knocked out jailbirds sing/ Let's rock, everybody, let's rock/Everybody in the whole cell block/Was dancin' to the Jailhouse Rock”: a primeira vez escutando um idioma desconhecido, entendendo nada, adorando a música e sendo apresentada para o primeiro bad boy do qual tive conhecimento, Vince Everett. E confesso que assisti a todos os filmes do Elvis Presley que passaram na televisão, assim como os de Fred Astaire.

As festas de Natal e Ano Novo na casa dos avós, no mesmo quintal onde morávamos. Nunca fui festeira, costumava me esconder em outro canto da casa, mais quieto. Só que bastava tocar essa música para eu cair na dança. “O mar serenou quando ela pisou na areia/Quem samba na beira do mar é sereia”. Clara Nunes sempre estava sempre presente entre nós, naquela época.

A primeira vez que pensei sobre a hipótese de se perder alguém que se ama para a morte: “Sunshine, on my shoulders makes me happy/Sunshine, in my eyes can make me cry/Sunshine, on the water looks so lovely/Sunshine, almost always makes me high”. Perdi a conta de quantas vezes assisti ao filme “Um dia de sol”. Ainda não entendia o que era dito na canção, mas o filme e a voz do John Denver ajudaram na percepção.

A primeira música a me virar ao avesso: “Só eu sei / As esquinas por que passei / Só eu sei só eu sei / Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar / Sabe lá”. E aquela que toquei em estreia com banda, de pisar em palco, de encarar público: “Nada vejo por esta cidade/Que não passe de um lugar comum/Mas o solo é de fertilidade/No jardim dos animais em jejum”, seguida por “So, so you think you can tell/Heaven from hell?/Blue skies from pain?/Can you tell a green field/From a cold steel rail?/A smile from a veil?/Do you think you can tell?”. Depois, divertindo-me à beça com a banda que resultou dessa estreia: “Não tenho culpa se você engordou/Não pensando que eu vou me casar/Mulher de músico é a música/E a minha vida é o rock’n’roll.”

Aquela que eu adoro, mas não foi trilha sonora de uma boa história, que me ensinou que, às vezes, a realidade se mistura com a ficção e bagunça tudo: “What will you do when you get lonely/And nobody's waiting by your side?/You've been running and hiding much too long/You know it's just your foolish pride/Layla/You've got me on my knees, Layla”. A que me fez chorar durante um show fantástico do Pat Metheny: “This is not America, sha la la la la/A little piece of you/The little peace in me/Will die [This is not a miracle]/For this is not America.” Aquela que decidiu se mudar de vez para o meu dentro e faz seus próprios arranjos em minha alma: “Arrumei a casa, espanei o pó do peito/A tristeza, dei um jeito de escondê-la no capacho/Areei os olhos, me quarei lá no riacho/Tirei a roupa do tacho e botei tudo no lugar/Terça-feira, hoje eu acho que meu amor vai voltar”.

A densa e tensa, com suas camadas e dinâmica, que serviu de trilha sonora para a mais ampla declaração de afeto, com direito às levezas e aos suspiros: “In my time of dying, want nobody to mourn/All I want for you to do is take my body home/Well, well, well, so I can die easy/Well, well, well, so I can die easy”. Para o dia em que compreendi que solidão é condição perfeita para autoenfrentamento: “Solidão é lava/Que cobre tudo/Amargura em minha boca/Sorri seus dentes de chumbo/ Solidão palavra cavada no coração/Resignado e mudo”.

Que minhas tias cantavam e acabou tatuada na minha lembrança. Vez e outra, me pego cantarolando: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho/Deixem que eu decida a minha vida/Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol/Porque bate lá o meu coração”. Há aquela que me adoça o pensamento, sempre que toca em minha memória: “É sobre-humano amar/'cê sabe muito bem/É sobre-humano amar sentir doer/Gozar/Ser feliz”.

A primeira vez que a escutei, essa música se espalhou pelos meus sentidos e não saiu mais da lista das que moram no meu player. A primeira vez que a escutei ao vivo, com a banda no palco, a banda que eu adoro de paixão, foi como relembrar que música é coisa sem a qual eu não vivo: “Everything's different/My head in the clouds/I hit this corner/With my foot on the gas/I started sliding, I lose it/Everything's different just like that”. Que sem ela, eu não teria aprendido a me permitir inspirar, que gravar uma fita K7 inteirinha, lado A e lado B, com a mesma música, continua sendo bom, só mudou a forma, o formato, mas não a delícia do replay musical. Que tem gente que despe a alma na letra, que é generoso o suficiente para arrancar da gente gritos de satisfação com a música. Que tem gente que faz música para Deus, aos seus demônios, aos amigos e amores, para declarar e para forjar mistério. E almejando alegria, flertando com a tristeza.

Na música cabe um tudo de todos.


AS MÚSICAS CITADAS
  • A rosa e a formiga | Heitor De Barros
  • Acorda, Maria Bonita | Antônio dos Santos
  • Sítio do Pìca-Pau-Amarelo | Gilberto Gil
  • Retirantes | Dorival Caymmi
  • Jailhouse Rock | Jerry Leiber & Mike Stoller (com Elvis Presley)
  • O mar serenou | Antônio Candeia Filho (com Clara Nunes)
  • Sunshine on my Shoulders | Dick Kniss, Mike Taylor e John Denver (com John Denver)
  • Esquinas | Djavan
  • Jardim das Acácias | Zé Ramalho
  • Wish You Were Here  song review | David Gilmour e Roger Waters (com Pink Floyd)
  • Minha vida é Rock n'roll | O. Vecchione (com Made in Brazil)
  • Layla | Eric Clapton
  • This is not America | David Bowie (com pat Metheny)
  • Espera | Kleber Albuquerque
  • In my time of dying | John Bonham, John Paul Jones, Jimmy Page, Robert Plant (Led Zeppelin)
  • Dança da solidão | Paulinho da Viola (com Marisa Monte)
  • Comentário a respeito de John | Belchior (com Bianca)
  • Mais simples | José Miguel Wisnik
  • So Damn Lucky | Dave Matthews


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