A VIDA PASSA. AINDA BEM >> Zoraya Cesar

O casamento fora razoável enquanto durou. Casaram-se naquela época em que, se o rapaz não tinha ficha na polícia, não era tresloucado e ainda tinha um emprego razoável, já estava bom demais. A sociedade não o deixava solteiro muito tempo e moça casadoira não faltava. Casaram-se depois de curtíssimo noivado e ele trabalhava duro para sustentar a mulher e os três filhos,.

Era do tipo enrustido. Entrava mudo e saía calado. 

Um dia, ele saiu calado e não entrou mudo. Não entrou mudo, nem surdo, nem a pé e nem de trem. 
Saiu para trabalhar e não voltou. Sumiu. Desapareceu Escafedeu-se. Não sei se ele teve ou não a decência de mandar um bilhete:

- “Prezada Ana, fui comprar cigarros e não encontrei o caminho de volta.”

Ou:

- “Prezada Ana, cansado de trabalhar como um mouro, resolvi trabalhar como um infiel.”

Ou:

- “Prezada Ana, encontrei o emprego dos meus sonhos. Vou continuar dormindo." 

Nem isso nem aquilo. Mas, enfim, ele era caladão mesmo. Ana passou semanas totalmente perdida, procurando na polícia, nos hospitais, necrotérios, nada. 

Sabemos todos que uma das poucas certezas desse mundo é que o tempo não para. Contas a pagar, dívidas a honrar, compromissos a cumprir, comida a ser posta na mesa, crianças na escola, e Ana, mãe de três filhos, abandonada pelo marido, não podia se dar ao luxo de ficar chorando misérias no sofá. Até porque miserável ela não queria ser. 

A história de luta e superação de Ana não difere muito da maioria, com o agravante de que, à época em que seu marido foi abduzido por marcianos, uma mulher abandonada era sempre meio que estigmatizada na sociedade. As amigas casadas viravam ex-amigas (quando não viravam também a cara), emprego era difícil e não havia essa profusão de creches de hoje em dia.. 

Uma história igual a tantas outras. Mas, como cada história tem seu caminho próprio, a de Ana também tomou seu rumo, que podemos resumir assim:

Ela conseguiu emprego na escola das crianças, que ganharam bolsa. Os poucos parentes deram uma ajuda. Vendeu doces, correu pra cá, correu pra lá, e a vida foi seguindo, Ana arranjando coisa melhor - sempre tem Almas boas nesse mundo que auxiliam a quem se esforça. No final das contas, tudo deu certo.

Pronto. 

O tempo passou, como é de sua natureza passar, e nada há que o faça parar. As crianças cresceram, a família também e a situação, agora, nem de longe lembrava os negros primeiros tempos.

Só uma coisa não mudara. Ana não queria saber de homem para ela. Bem que amigas, família, todos, ao longo dos anos, tentaram fazê-la se interessar por diversos rapazes, homens, senhores, conforme a idade ia avançando, mas Ana, firme, dizia, casar, nunca mais. 

Nunca. Eis uma palavra que tem vontade própria, e um espírito traiçoeiro, para não dizer, de porco. É como um cavalo, quando você pensa que o domou, que o tem seguro pelas rédeas, ele, inopinadamente, segura os freios com a boca, domina a situação, empina e sai desabalado, a seu bel-prazer, e dane-se você, ou quem estiver nele montado. 

Cabelos brancos, pele enrugada, rosto sem pintura. Palavras podem ser muito ingratas, pois, vejam se não concordam comigo: quem lê essa descrição, pensa numa velha feia e apagada. Mas, no caso de Ana, isso não poderia estar mais longe da verdade. 

A brancura dos cabelos emoldurava seu rosto, tal qual uma aura; sua pele era macia e a face não precisava de maquiagem, os olhos brilhavam o suficiente para enfeitar qualquer semblante.  Porque, não importa o que Ana tenha passado na vida, ela jamais perdera sua luz, e seu riso estava sempre a postos. Ana era bonita. Daquelas mulheres que ficam idosas, mas não velhas.

Dizem que a beleza está nos olhos de quem vê. E Seu Joaquim, 10 anos mais moço que os 79 de Ana, viu-a em toda sua plenitude. Viu uma mulher meiga, engraçada e serena. Viu mais: uma mulher batalhadora que soube criar os filhos e manter a família unida; que não se deixou amargurar pela aspereza da vida, nem permitiu que as vicissitudes esvaziassem sua crença em dias melhores. 

Viu isso tudo e enxergou nela uma companheira de vida. 

E tanto fez, que conquistou o coração de Ana. Viúvo, careca, catarata operada, chegado numa roda de samba, numa cerveja gelada e conhecia todas as músicas românticas do Roberto Carlos. E atleta, pedalava três quilômetros por dia, só para visitá-la, levando flores, docinhos, revistas, convites para passearem. Um dia pediu-a em casamento.

Ela rejeitou? Nada. Aceitou sem titubear (para alegria - também surpresa, porque negar? - da família). 

E foi coisa informal, devido à idade avançada dos nubentes? Que nada! Vestido branco, fraque, buquê, cravo na lapela, arroz, cerimônia religiosa, o filho mais velho de Ana levou-a ao altar, os noivos se beijaram, os fotógrafos fotografaram, os netos filmaram, o padre dançou... uma festa maravilhosa. E a lua-de-mel, presente das duas famílias junto com os amigos, foi em Gramado, que os dois adoram um chocolate quente no inverno.

Acabou aqui?

Nada. A história está só começando.

Comentários

ô, minha amiga, que a esperança suave de dias melhores abençoe a nossa vida sempre!

beijo!
Anônimo disse…
oi querida, que cronica gostosa! não importa a sequencia - so de ver uma mulhar que superou tudo e é linda aos 79!

Cecilia
Carla Dias disse…
Zoraya, Zoraya... Fiquei até esperançosa de conhecer um amor que caiba na minha alma, assim, depois dos 70, quase lá nos 80. Ana inspiradora :) Beijo!
Erica disse…
É, querida, a vida passa, mas não podemos nos deixar passar por ela como se ela não tivesse acontecido. Temos que fazê-la valer, porque ela é muito curta e pode ser boa ou ruim, mas depende de nós tentar mudar seu rumo quando está indo pro lado errado. Porque não podemos nos dar conta dela só quando as jabuticabas do cesto já estão acabando. Rubem Alves bem sabia o valor de cada uma delas e aproveitou seu sabor adocicado até o quanto pôde. Devemos seguir seu exemplo e experimentar uma a uma, mesmo que no meio do caminho seja preciso fazer uma geléia. :-)
Clarisse disse…
Zô. linda a sua crônica, adoro quando você fica "sentimental". Bjs

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