INVEJA >> Whisner Fraga

Cacá Diegues nos alertava, em 1978, a respeito da existência de um patrulhamento ideológico que dominava o afetado cenário intelectual brasileiro da época. Mudam-se os meios, ficam a mentalidade e a tradição. Essa patrulha age sorrateiramente nas redes sociais, motivada, sobretudo, pela inveja. Assim, quando um "amigo" (porque somos todos amigos nas redes) posta uma foto, devidamente tratada em algum Instagram da vida, de uma faustosa alheira ou de uma cardíaca feijoada, o que está expondo não é somente a sua fome ou o seu requintado padrão gourmet. Não. Para os "amigos", está achincalhando a boa vontade alheia. Para os "amigos", aquela postagem suscita as seguintes reflexões: 1) Puxa, o cara ganha uma mixaria, mas vai direto a restaurantes chiques. Que merda é essa? Tem algo errado. 2) Ué, ele não tinha de estar trabalhando agora? 3) Nossa, e aquele/a vinho/cerveja ali do lado. Não é que o sujeito é alcoólatra mesmo?

É evidente que a patrulha não tem umbigo ou, se tem, não se dá ao trabalho de olhar para ele, pois está muito ocupada peneirando informações válidas sobre a vida dos outros. O que está por trás de toda essa vigilância é a questão: por que ele e não eu? E não é você porque a sua ganância e a sua sovinice e a sua apatia não o deixam tirar o adiposo bumbum dessa sua chique cadeira giratória para tentar fazer algo do que lhe resta de vida. A natureza humana é poderosa. Ela recita o dia inteiro baixinho em nosso ouvido como é duro suportar o sucesso do "amigo", mesmo que esse "sucesso" seja somente uma farsa encoberta por um enquadramento bem-sucedido.

Na Internet somos todos fingidores e divulgamos apenas o lado bom de todas as coisas, inclusive de nós próprios. É como se vivêssemos em eterna paquera: tudo é retocado, burilado. Não faço apologias a nada, não acho que isso seja bom ou ruim. O que quero deixar é um alerta: não caiamos nestas armadilhas virtuais. Que tal um pouquinho de verdade nesses perfis idealizados?

Outro dia um desses amigos, que, por coincidência, é um conhecido na vida real, veio me alertar que eu devia parar com essa história de literatura, para eu evitar de postar no Facebook minhas impressões sobre livros, sobre participações em eventos literários, que isso podia pegar mal no trabalho. Como se toda a minha carreira literária não fizesse parte de um labor intelectual que me dá muito prazer e que é também um pedaço de minha biografia. Um recado: nenhuma patrulha vai me pegar.

Não me canso de defender que tenho, hoje, duas ocupações: a docência e a escrita. Ainda não conseguiria abandonar uma ou outra, pois gosto de ambas. E acredito que sou relativamente bem-sucedido nas duas, pois sempre tento impor qualidade ao que faço. E qualidade tem como pressuposto o trabalho árduo e a consciência de que o melhor de nós é o mínimo que temos de imprimir às tarefas que nos são confiadas.

Comentários

sergio geia disse…
Amigo Whisner. Como você, escrever pra mim é algo existencial; o dia não se completa sem um tempinho de criação. Agora fala sério essa patrulha, hein? Parabéns pela crônica e obrigado pela acolhida.
whisner disse…
Élida, Sergio e Eduardo, abraços aos três.
Zoraya disse…
Bom demais, Whisner! (novidade... rsrsr)

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