ACORDA, ACORDA >> Carla Dias >>


Pessoa que sabe que o mundo não gira ao seu redor, que é coadjuvante nele, que silêncio tem camadas e motivos. E que tudo o que desacontece – porque só aconteceu na sua cabeça – não significa fim. Tem o humor bipolar, por isso mesmo, há dias em que chora, há dias em que faz chorar. Livros de cabeceira empilhados, que não quer se abster das escolhas. Exercita, diariamente, perdoar-se, na tentativa de enfraquecer o hábito de acumular culpas.

Não tem certeza sobre Deus, mas se apega a Ele nos momentos difíceis. Chegou à conclusão de que não acredita em um Deus no qual, em seu nome, e com seu aval, seja cometida a violência do desamor, da intolerância. Depois, aceitou de vez que isso é coisa do ser humano. Está em processo de compreensão dos poucos mistérios da vida aos quais são oferecidas explicações. Sempre gostou de aprender, então segue nesse caminho, a passos lentos, que não quer se perder dos detalhes importantes por querer apressar o que não se curva ao tempo dos homens.

Apesar do desapego pelas certezas, está certo de que realizará um ou dois sonhos que tem sonhado acordado há anos. E sonhar acordado pode lhe arrancar da realidade, torná-lo um imaginador em vez de um vivente. Por isso ele sonha acordado, misturando à cadência desses sonhos a afluência de acontecimentos cotidianos. Sendo assim, enquanto está em ônibus lotado, indo para o trabalho, observa as pessoas a sua volta, e algumas, aquelas que ele acha interessantes, adota como personagens desse sonho. Mesmo atrasado, hoje ele se sente particularmente inspirado para sonhar acordado.

Como a menina, quatro ou cinco anos, cabelos encaracolados de um jeito meio anjo, meio cabelo ruim mesmo. Nariz encostado na janela, olhos grudados nas cenas externas, e uma voz miúda, mas afinadinha, cantando uma música sobre um boneco de nuvem que roubou a chuva de um lugar para chovê-la em outro, onde pessoas morriam de sede e de vontade de dançar debaixo das águas. Ele arqueia sobrancelhas, sem entender como menina tão pequena, tão bonitinha e delicada, quase uma minidondoca vestida em panos rosa, podia cantar coisa tão séria. Ao lado dela, uma mulher de olhar sofrido e pele arrebatada pelas exigências de uma vida que não parece fácil. Ainda assim, a mão da mulher pousa suave, pluma travestida de longos dedos, com unhas comidas na hora da ansiedade desembestada, sobre a mão pequena da menina.

Durante quase quarenta e cinco minutos ele sonhou acordado com a mulher e a menina, só que pela primeira vez ele sonhou o mesmo sonho, mas de jeito diferente. Sonhou melhor para elas do que para ele. Sonhou a mulher descansada, protegida, cozinhando delícias em fogão seis bocas, cozinha simples, mas suficiente para uma vida mais leve. Sonhou a menina dançando e cantando na sala, enquanto lá fora a chuva despencava bonitamente. Sonhou a vida acontecendo com afeto e respeito.

O ônibus dá um tranco, e um homem de voz esganiçada berra com o motorista. Filho da mãe! Aprendeu a dirigir pela internet? Ele não consegue segurar o sorriso, e isso, em meio a tanta dificuldade para ser e se locomover, é bálsamo.

A mulher cochicha no ouvido da menina e ela sorri, mas não do jeito que ele sorriu com o comentário do outro passageiro. Não com jocosidade. A menina sorri com vigor de quem acredita na felicidade. E essa contemplação o desapruma, coloca-o em estado de necessidade.

Ele quer aquele sorriso.

A mulher ajeita as roupinhas da menina e lhe beija a face, depois lhe ajeita os cachos rebeldes. Quando olha ao redor, é pega por certa preocupação, que o ônibus está tão lotado, que mal há espaço para um passo pra lá e outro pra cá. Daí que ela encontra o olhar dele, um banco pra frente, e ele não o desvia por ter sido pego no pulo, na observação. Sem hesitar, a mãe se levanta, pega a menina no colo, então a segura e estica os braços, pode segurar a menina, moço? 

Em seus sonhos — aquele par que ele vem sonhando acordado há tempos —, nunca foram incluídas outras pessoas. São sonhos para solitário que sabe que não só o mundo não gira ao seu redor como quase nunca quer saber sobre o que ele pensa ou sente. Ele firma os pés no chão, garantindo equilíbrio, e pega a menina que se enrosca no pescoço dele, bracinhos miúdos. A mulher sai de seu banco, espremendo-se como pode. Ele se impõe pelo caminho, que entendeu que tem o dever de levar a menina até a porta, sem que lhe apertem do jeito que acontece com a mulher. Ele chega à porta, enquanto a mulher ainda luta para alcançar a linha de chegada.

A menina deita a cabeça no ombro dele, e começa a cantar outra música, desta vez sobre um homem que precisa salvar uma aldeia de borboletas de um vento soprado errado. Ele se envolve com a história desse homem, ele tem alma boa e pode ajudar, só não sabe disso ainda, e quando a mulher lhe toca o braço e sorri, obrigada, e ele lhe entrega a menina, depois de ela dar o sinal para descer, é como se estivesse entregando seus sonhos, seus sentimentos, seus desejos, até os ainda desconhecidos por ele.

A menina o encara, sorri bonito, leve, feliz. Arqueia o corpo e lhe beija o rosto, depois continua a cantar sobre o homem, as borboletas, a aldeia, o vento errado. A mulher o encara, ela é assim, moço, gosta de inventar músicas, principalmente quando está no ônibus.

O ônibus continua a sua viagem, entregando pessoas aos seus pontos. Até onde seus olhos conseguiam enxergar, ele cravou o olhar sobre elas. Naquele dia, não conseguiu sonhar acordado novamente, o que era sua fuga diária quando o trabalho se tornava quase insuportável ou a solidão berrava.

Durante vários dias, ele se atrasou para o trabalho ao pegar aquele mesmo ônibus. Não conseguia sonhar acordado, só pensava em escutar a menina que inventa canções no ônibus. E no dia que as reencontrou, mesmo lugar no ônibus, elas no mesmo banco, a menina cantando, a mulher cuidando dela.

E hoje ele observa, em pé na porta, entre a cozinha e a sala de estar, a mulher a cozinhar delícias, enquanto fala sobre as boas novas do trabalho. Na sala de estar, ela inventa uma canção sobre um peixe que gostava da lua e queria abraçá-la. Agora ele sabe que, às vezes, é preciso parar de sonhar acordado para saborear a vida. Que o mundo pode nem lhe dar importância, mas ali, naquele momento, ele é importante para alguém. Alguém é importante para ele.

Imagem: sxc.hu

Comentários

Carlos H. disse…
Lindo texto. Um belo reflexo do que somos, essa multidão de 'eus' mergulhada duma profusão interna interminável, que vive do desacontecimento a cada esbarrão seguido do desconcertado e incômodo rearanjo das peças de corpos. Me seduz e docemente me afaga tal modo como as palavras fluem, me inundando duma atmosfera onírica essa indefinida dimensão atemporal de que alimenta o seu leitor.
Que lindeza, Carla! Mexeu meu dentro. :)
Carla Dias disse…
Carlos... Obrigada pela leitura e pela gentileza expressa nas suas palavras. Abraço.

Eduardo... Que bom! Que adoro quando o que escrevo sai por aí mexendo o dentro de quem me lê. Beijos.
Anônimo disse…
incrível,ando precisando parar de sonhar um pouco e viver o momento apesar de que muitas vezes os sonhos são melhores do que o que nos cerca.
Carla Dias disse…
Anônimo... Bom mesmo é quando trazemos parte dos nossos sonhos para a realidade.

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