TUDO O QUE É DEMAIS SOBRA >> Sílvia Tibo




Há quem diga que bichinhos de estimação pouco percebem o que acontece à sua volta e que tudo o que querem e de que precisam é comida, água e alguns afagos ou sinais nossos, vez por outra, apenas para se certificarem de que há um humano pelas redondezas e, então, saberem que são poucas as possibilidades de que passem fome ou sede.

Mas, como nem tudo está perdido nesse mundo, há quem dispense a esses companheirinhos muito mais do que comida e água. Há, felizmente, quem lhes dê amor, na certeza de que esse mimo está entre os itens necessários à sua sobrevivência.

E há, ainda, quem, não se considerando superior a eles, esteja aberto e disposto a aprender e absorver as lições diárias ministradas por esses amiguinhos de outra espécie. Lições de fidelidade, de assistência incondicional, de amor gratuito. E também de cuidado.

Dia desses, recebi uma dessas lições do meu filhote de quatro patas, que ficou registradinha aqui na memória dessa mãe (de cachorro) de primeira viagem.

Aliás, falando de filhos (agora os humanos), não sei o que a vida me reserva. Se poderei gerá-los naturalmente ou se precisarei me valer de uma técnica qualquer de reprodução assistida para que eles venham ao mundo (o que, por sinal, em nada me desanima). Se optaremos (meu quase marido e eu) por apenas um herdeiro ou se os danadinhos resolverão chegar em dupla ou em trio, de surpresa, pra mostrar de vez quem é que manda no território.

A única pretensão que tenho e sempre tive é de criá-los com praticidade, sem fazer as coisas parecerem mais difíceis do que realmente são. Ou, ao menos, de tentar lhes mostrar que viver é para os fortes mesmo, como dizem por aí, mas que basta um pouco de organização e algumas doses diárias de bom humor para que se dê conta do recado e se cumpra direitinho o dever de casa.

Não sei se essas ideias lhes servirão para alguma coisa. Nem mesmo sei se eles as escutarão, se lhes darão ouvidos ou se lhes virarão as costas, seguindo apenas suas próprias convicções, o que eu procurarei respeitar, caso aconteça.

São muitas as possibilidades, resumindo a história. E confesso que acho incrível o fato de simplesmente não saber o que o destino me reserva. Afinal, qual seria a graça de levar uma vida previsível, sem que nada de novo nos acontecesse?

Certa dose de surpresa é sempre bem-vinda. Mais do que isso, é essencial ao nosso crescimento, pois é diante da chegada do “novo” que, muitas vezes, despertamos para a vida e para tudo o que ela é capaz de nos oferecer se estivermos abertos a ela.

Para além do susto (positivo ou negativo) que toda surpresa provoca, o que ficam são os ensinamentos que ela deixa. Bem ali, em nosso subconsciente, que é capaz de registrar esses sinais e transformá-los em experiências, com o objetivo e na esperança de que saibamos utilizá-los da melhor maneira: colocando em prática os positivos e descartando de vez os negativos.

Pois bem. A última surpresinha (negativa) do ano passado veio numa quinta feira do mês de dezembro. Como há muito não acontecia, nesse dia dormi um pouco além do previsto e do esperado e acordei aos pulos, já atrasada para um compromisso e me perguntando o que havia acontecido com meu despertadorzinho-peludo-e-ambulante-de-quatro-patas, que me põe de pé diariamente, no mesmo horário, com a convicção de que tem o dever de cumprir essa missão, inclusive aos sábados, domingos e feriados ou naquelas manhãs pós-festas, quando tudo o que se quer é prolongar a estadia embaixo dos lençóis.

Mas o fato é que, naquele dia, achei estranho o fato de acordar tarde e sem nenhum sinal de passinhos e grunhidos pelo quarto, ao redor da cama, típicos do meu despertador em forma de cachorro.

Ao sair do quarto, vi que a bolinha de pelos ainda estava em seu travesseiro xadrez (que ele adotou como cama), preguiçoso e jururu, com o olhar triste e o rabinho entre as patas, o que pra mim foi sinal de alerta máximo.

Corri para o veterinário, que diagnosticou sinais de uma doença grave causada por carrapatos. Com o coração apertado, mas seguindo suas recomendações, deixei meu filhote internado por alguns dias, à base de soro e antibióticos, e depois dei continuidade ao tratamento em casa, durante um bom tempo, com o uso de outros medicamentos e também de uma espécie de coleirinha repelente, que o veterinário indicou, enfatizando, por mais de uma vez, que aquele era o mecanismo mais eficiente (e, por isso, mais do que suficiente) para se evitarem novas infestações.

Durante algumas semanas, me contentei com a tal da coleira, que não saiu mais daquele pescocinho gorducho. Fiquei segura de que aquela coisa tinha mesmo todo o potencial mencionado pelo veterinário.

Mas não demorou muito até que eu resolvesse visitar uma loja nova e enorme de produtos para cães. Dessas em que se acha de ração a banho de ofurô e motelzinho (sim, para animais). Entrei, percorri as muitas estantes e, em uma delas, encontrei uma seção só de produtos destinados a evitar picadas de mosquitos, carrapatos, pulgas e tudo o quanto há nesse estilo de praga.

Não resisti. Saí de lá com uma espécie de ampola carrapaticida para a aplicação no pescoço, um xampu com as mesmas propriedades para os banhos semanais e, de quebra, um spray que, pelo cheiro, pela bula e pelo preço, parecia matar até cobra.

Chegando em casa, apliquei, um após o outro, todos os produtos do super-kit-anti-carrapato que acabara de adquirir, certa de que, a partir de então, meu filhote estaria definitivamente protegido contra aquelas malditas criaturas marrons, com mil e um pés, que nos últimos tempos haviam resolvido sair de uma área vizinha de reserva ambiental e, sem pedir licença, se apossar de todo o quarteirão onde moro. E até de algumas paredes dos apartamentos da vizinhança, como andei sabendo em minhas pesquisas diárias.

Aplicados os produtos, dormi tranquila. Mas só por uma noite. Na madrugada seguinte, me deparei com um serzinho de olhos esbugalhados, inchados e vermelhos, chorando desesperadamente enquanto se coçava por inteiro, às três da manhã.

Voltamos, então, ao veterinário. O mesmo que me dissera, com todas as letras, que a coleirinha anti carrapatos era mecanismo mais do que seguro, indicado e S-U-F-I-C-I-E-N-T-E para evitar os terríveis invasores.

Não deu outra. O inchaço, a coceira e a vermelhidão eram sinais de intoxicação causada pelo super kit comprado pela mamãe aqui. Essa mesma, que agora vos fala, e que, lá no início da conversa, jurou de pés juntos que pretendia criar os futuros filhos (humanos) sem grandes neuras, preocupações, frescuras e excessos de cuidado.

O fato é que traí minhas convicções e meu filhote sofreu, e muito, por conta da minha incapacidade de resistir às investidas do coquetel-anti-pragas, que olhou pra mim, do canto da prateleira da loja, com uma cantada barata do tipo “me leve que eu te mostro do que sou capaz”.

A surpresinha, de novo, não foi das melhores. Mas dessa vez, deixou um importante recado. O de que excessos nunca são bem vindos, por melhores e mais nobres que sejam as intenções de quem os pratica. “Tudo o que é demais sobra”, como bem dizia a minha mãe. Inclusive proteção, preocupação e cuidado.


Comentários

albir disse…
Muito importante a lição que você aprendeu e repassou, Silvia. Mas tenha certeza de uma coisa: com filhos de qualquer espécie, você não vai conseguir evitar "grandes neuras, preocupações, frescuras e excessos de cuidados". Mas você não está só, tem a companhia de todos os demais pais e mães.
Unknown disse…
Querida Cynthia!
Obrigada pela leitura e pela visita aqui no "crônica do dia"...
Volte sempre!!!
Grande beijo!
Unknown disse…
Pois é, Albir!
Sei que ainda vou trair muitas e muitas vezes minhas convicções...
Difícil não se preocupar e tentar protejer ao máximo essas criaturinhas (humanas ou não) que tanto amamos, né?
Seguirei tentando, entre erros e acertos, mas com a melhor das intenções!
Obrigada pela leitura!
Grande abraço.
Karoline disse…
É uma lição para muitos!
Ainda bem que depois tudo foi resolvido !
Abração.

Unknown disse…
Ei Karolzinha!!!

Menina, foi um susto grande mesmo...
e eu fiquei me culpando por ter usado o super-coquetel-anti-carrapatos durante dias...

Meu filhote de quatro patas agora está bem, felizmente, mas foi, sem dúvida, uma lição do que não fazer com os futuros filhotes humanos...

Aprendendo com os erros, né?

Beijinhos e obrigada pela leitura!!!
Carla Dias disse…
Cuidar requer esse aprendizado, não? O de testar meios e medidas, assim, mesmo sem querer. Quantas vezes exageramos acreditando que estamos dando mais, tudo o que podemos? A lição é boa, fica o aprendizado. Ainda assim, é o tipo de excesso que cometemos com quem amamos durante a vida. Que os próximos sejam dignos de gargalhadas, não de tratamento. Beijos!
Zoraya disse…
Silvia, uma graça sua crônica! Tadinha, que sufoco, hein? Que seu susto nao tenha sido em vão, e que você tenha realmente aprendido a lição. E nós também, por que, nada sendo por acaso, com certeza todo mundo que leu sua saga devia estar precisando desse puxão de orelhas também. Sua Mae estava certíssima! Beijos
Unknown disse…
É verdade, Carla! Pecamos muitas vezes pelo excesso, mas o que faz com que nos perdoemos é a certeza de termos agido com a melhor das intenções, não é?
Desejo muitas gargalhadas sempre pra você também!!!
Grande beijo!
Unknown disse…
Zoraya, querida!
Tudo terminou bem, felizmente!
Meu filhote está alegre, saltitante e sem coceiras, como antigamente...
Espero ter aprendido mesmo a lição. Mas sei que ainda cometerei excessos de amor e cuidado por aí... resta torcer para que eles sejam dignos de mais gargalhadas e menos tratamento, como disse a Carla...
Beijinhos.
vim aqui só para saber noticias dos seus filhote de quatro patas, agora que sei que ele esta bem , fico tranquilo


belo texto
Unknown disse…
Ah, Vanderley!
Ele agradece a preocupação, viu? Rsrs.
O susto foi grande, mas tudo terminou bem, felizmente... e a mamãe aqui aprendeu a lição!
Abraço e obrigada pela leitura!

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