AS IRMÃS ENIGMÁTICAS >> André Ferrer


Nos últimos dias, releio “A hora da estrela” e “A convidada do casamento” para tirar uma teima que, há pelo menos duas décadas, incomoda-me. Clarice Lispector (1920-1977) e Carson MacCulers (1917-1967) nunca me enganaram. Têm almas gêmeas. A forja que as moldou é a mesma.

Contemporâneas, fizeram a recriação literária do pós-guerra só que, ao contrário da maioria dos autores da época, de dentro para fora. Seus personagens representam a barbárie do século XX através da solidão e de uma autoconsciência devastadora. Macabéa e Frances, protagonistas das obras que releio, têm absoluta certeza da sua condição de excluídas.

Na década de 1990, quando descobri MacCullers, eu já conhecia Lispector. Assim, as primeiras páginas de “A balada do café triste” pareceram-me familiares. Uma sensação que, a partir do instante de reconhecimento daquela irmandade de espíritos, passei a recordar e realizar com o impacto de uma epifania.

Epifania é uma palavra difícil. Inadequada, nesta era esquematizadora, à leveza de uma crônica. Pois bem, para o benefício da clareza, ameacemos um pouco a brevidade do texto. Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência de algo.

Sendo assim, quando duas pessoas dividem a mesma epifania, ocorre uma aliança agradabilíssima que, irresponsavelmente, vou chamar de comunhão estética. Fenômeno cada vez mais raro.

A comunhão estética é uma reação em cadeia. Depende muito de uma fagulha inicial, a resposta do outro ao primeiro estímulo. Assim, de acordo com esse critério, a comunhão estética poderia ter cinco níveis de classificação (trata-se, naturalmente, de uma invenção subjetiva minha):

(4) o outro usa detalhes, elementos significativos e emotividade na exposição;

(3) o outro reage com alguns elementos significativos e alguma emoção;

(2) o outro usa elementos superficiais e alguma emoção;

(1) o outro reage com elementos óbvios;

(0) o outro não reage.

O que, afinal de contas, epifania e comunhão estética têm a ver com a minha releitura de Lispector e MacCullers?

Também nos anos de 1990, escrevi um texto a respeito da enigmática irmandade dessas duas escritoras. Eu esperava que o único leitor (sim, único, pois não mostrei para mais ninguém) daquele artigo atingisse, pelo menos, o terceiro nível da escala. Ficou no primeiro. Disse lugares comuns a respeito de “literatura feminina” e, ainda por cima, interpretou o meu texto como um libelo contra a brasileira que eu acusava de imitar a norte-americana. Um horror de distorção.

Esta semana, descobri um interessante paper na web. Além de comparar as duas autoras, o trabalho emprega “A convidada do casamento”, de MacCullers, para explicar semelhanças.

Epifania: Clarice Lispector traduziu para a Língua Portuguesa a versão dramática de "A convidada do casamento" (um romance de 1946, que a própria MacCullers adaptou para o teatro)!

Conforme eu desconfiava.

Comentários

Zoraya disse…
André, na minha lastimável ignorância, eu nao conhecia Carson MacCullers, e voce, como bom cronista, me deu vontade de procurar e ler imediatamente. Obrigada!
albir disse…
Zoraya tem razão. Também despertou meu interesse. Principalmente por ser alguém que "troca" com Clarisse.

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