UMA CRÔNICA ANTES DO FIM DO MUNDO
>> Fernanda Pinho
Meu
marido ajusta o relógio no pulso para ir trabalhar. Minha amiga que está
hospedada aqui em casa escova os dentes com minúcia. Da janela, vejo uma mulher regando vasos de
plantas em uma varanda do prédio da frente. Em outra varanda, há um senhor
lendo jornal com os braços apoiado no parapeito. Eu sigo de pijama e na cama, de onde pretendo
sair depois de postar a minha crônica.
Provavelmente, depois de sair da cama, colocarei relógio, escovarei os
dentes, regarei um vaso de plantas, lerei um jornal. Como todo mundo, como todo dia.
Nem
parece que amanhã é o grande dia. Nem parece que depois de tantas teorias,
conspirações, interpretações e debates chegamos, enfim, às vésperas do fim do
mundo. Não sei se encaro como
coincidência ou como missão o fato de que o último dia do mundo – e, portanto,
o último dia de Crônica do Dia – tenha caído justo numa quinta-feira. Na minha
quinta-feira. Estaria eu recebendo a missão de deixar uma mensagem para o mundo
pós-apocalíptico? Alguém teria acesso a essa mensagem depois que tocarem as trombetas? A internet
sobreviverá junto com as baratas? Ou será que nada disso faz sentido?
Não
seria a hora de mandar às favas dilemas cronísticos, relógios, escovas de
dentes, vasos de plantas e jornais para, enfim, responder na prática a questão
que sempre martelou em enquetes, entrevistas de celebridades, cadernos de
perguntas e canções: “o que você faria se só te restasse um dia?”?
Eu,
para ser bem sincera, não tenho muito o que fazer. Não faço parte do grupo que só compra presente de natal no dia 24 e que esperou
esse momento para dizer que ama, para revelar um segredo, para pedir perdão,
para perdoar, para sair da dieta, para pular de paraquedas, para provar uma
comida exótica, para fazer uma tatuagem,
para pegar estrada sem destino. O que eu quis fazer eu fiz e o que eu não fiz
não era tão importante assim. Detesto deixar pendências para última hora. Ou para o último dia, como queiram. E muito
menos acredito que hoje seja o último dia, a véspera do fim. Embora eu torça secretamente
para que seja mesmo.
Que
amanhã seja o fim de um mundo com gente que não dá passagem no trânsito, com
gente que não dá bom dia, com gente que grita ao telefone, com gente que
maltrata os animais, com gente que julga pela aparência, com gente que deixa
seus idosos em asilos, com gente que se acha dona da verdade, com gente que não
respeita o trabalho dos outros, com gente que complica. Quero compactuar com
aqueles que acreditam no fim seguido de um novo começo de era, de preferência,
com gente fina, elegante e sincera.
Que
venha o fim.
Comentários
Que haja um bum de tolerância, respeito, educação, bons modos...
Menos teoria e mais práticas de coletividade, civilidade, bom gosto, bom senso...
O mundo vem acabando aos poucos amanhã bem podia ter servido como uma data para que se notasse isso, mas lamento em observar que não se fez bom uso da reflexão ou do medo, há que plantar daqui e dali sementes de esperança, quem sabe esse mundo cego e perdido e desprovido de valores e conhecimentos, sem cifras, acabe e um novo mundo nasça. Oxalá!
Existem e isso é 'normal', muitos problemas que podem acabar com o nosso próprio mundo, de como nós nos damos com os outros. Se somos cruéis demais, se somos egoístas, gananciosos, desumanos que não progride para vencer com o bem, enfim, não devemos só refletir e acreditar em profecias que parecem ser verdadeiras, mas nas atitudes de um sociedade em decadência que usa a má fé no homem como destino traçado sem mudanças que é a profecia.
Muito boa sua crônica :)
E que ele surja o quanto antes...