A CAIXA DE PRATA >> Zoraya Cesar

A bolsa estava aberta, aparentemente esquecida, no banco ao lado. Uma bolsa comum, de compras, simples até. Normalmente, Claudia nem teria prestado atenção, mas seus olhos vislumbraram, dentro da bolsa, uma caixa de prata, finamente esmaltada aqui e ali com delicados desenhos coloridos e brilhantes, entremeados de filamentos dourados. Parecia artigo de antiquário. Ela saberia, pois trabalhava em um. E nunca vira algo tão bonito.
 
À medida que olhava, a curiosidade exercia uma atração tão irreprimível, e começou a afogá-la de tal maneira, que agiu sem pensar – tivesse pensado, talvez não roubasse a caixa.
 
Voltou para o antiquário sentindo um prazer quase sensual ao tatear a caixinha, até ao toque era perfeita, pensava, devia valer uma pequena fortuna. O que haveria dentro? Talvez uma jóia, algo muito rico e importante, certamente. Mas Claudia não estava com vontade de se desfazer de seu pequeno tesouro roubado. Queria mesmo, quase irracionalmente agora, ver o que havia dentro dela.

Chegou à loja e correu para o banheiro. Tirou sofregamente a peça da bolsa e tentou abri-la, mas ela permaneceu tão fechada e inerte quanto os lábios da Esfinge de Gizé, a olhar o tempo levar as areias para o infinito. Sacudiu levemente seu novo objeto de adoração e ouviu um ruído surdo, como se algo macio batesse nas paredes. Cláudia exultou. Ah!, então ela abre e tem algo aí dentro, que eu quero para mim, de qualquer jeito, repetia, obcecada.
 
Alguém bateu à porta, ela escondeu a caixinha e saiu, seus pensamentos tomados pelo misterioso conteúdo, que agora ela desejava mais que tudo na vida.
 
Na loja, sua colega estava ocupada limpando qualquer coisa, era a vez de Claudia atender o próximo cliente. Que veio a ser uma mulher elegantemente vestida de bege e malva, mais magra que esbelta, tão branca que parecia translúcida, de grandes e espantados olhos azuis, que lhe davam um ar ao mesmo tempo angelical e angustiado. Um grande colar de pérolas – que Claudia, experiente, avaliou como sendo verdadeiras – pendia de seu pescoço. Toda ela recendia riqueza antiga. Uma presença, podemos dizer, marcante. Não mais marcante, no entanto, que sua voz. Era rouca, profunda e baixa como que saída de um livro há muito não aberto, e tinha um timbre de urgência que mais parecia o de uma criança perdida procurando a mãe.
 
- Você teria uma caixa de prata, filigranada de esmalte e ouro?, perguntou, os olhos suplicantes.
 
- Não – tartamudeou Claudia, insegura, após breves instantes que, a ambas, pareceram eternidade. Não tenho.
 
A mulher estremeceu levemente, abaixou os olhos e suspirou. Eu a perdi, disse. Preciso tê-la de volta, é muito importante para mim. Por favor, se alguém a trouxer aqui, eu a quero.

- Tem certeza de que não a viu? - insistiu.
 
O telefone da loja tocou, Claudia distraiu-se e, ao olhar de novo, a mulher não estava mais lá. Alguma coisa urgente esmagava seu coração, e agora ela precisava abrir a caixa a qualquer custo, nem que tivesse de quebrá-la. Ela queria possuir o conteúdo da peça, irracionalmente, alucinadamente.
 
Dentro do banheiro, segurou a caixa nas mãos pronta a jogá-la no chão, mas, surpreendentemente, ela abriu sozinha, com um leve clique, expondo seu conteúdo à luz do dia.
 
Com um pequeno grito abafado pelo espanto, Claudia bateu a tampa da caixa com força e, tremendo tanto que mal podia andar, voltou ao salão, disposta a devolver tudo no mesmo lugar onde havia encontrado. E se a polícia viesse atrás dela? E a mulher? E se a mulher voltasse procurando a caixa, o que deveria fazer? Continuar negando? Uma coisa era certa, iria apagar todas as suas impressões digitais do objeto maldito, sua obsessão completamente curada pelo susto.
 
Suava frio, com medo de a mulher aparecer de novo. Mas quem entrou foi outro cliente, querendo um abajur do século XIX. Claudia respirou fundo, tentando se acalmar, e, sorrindo, apontou na direção do armário onde estavam as peças que poderiam interessá-lo. O homem, no entanto, gritou ‘Meu Deus’, e saiu correndo, derrubando alguns objetos valiosos no caminho.  A outra vendedora, ao ver o que provocara reação tão inusitada, foi mais histérica e desmaiou. Claudia olhou para si mesma e seu coração falhou algumas batidas.
 
Ao final de seu braço, lá mesmo, onde deveria estar uma parte do seu corpo, sua mão sadia fora substituída pela mão apodrecida, cinza-azulada, com manchas arroxeadas e escaras repugnantes nos poucos lugares onde ainda havia pele, se é que se podia chamar de pele os restos que cobriam os ossos amarelados, mão que deveria estar trancada na caixinha prateada, filigranada de esmalte e ouro.
 
Ao seu lado, ouviu o sussurro da mulher de malva:
 
- Pode devolver minha caixa agora que você já possui o conteúdo?

Comentários

Anônimo disse…
ui, amiga!

você está se superando como sempre! até eu tremi, rs...

há que se ter um dom para encantar e um maior ainda para assustar...

bj, Ana.
Anônimo disse…
Te cuida Hitchcock, Zozoca vem aí!!!Rsrsrsrs
Tom (aquele...)
Anônimo disse…
Se me amarrei! Mó medão! Bj, Marmotta.
Anônimo disse…
Sinistrinha essa crônica, mas se eu encontrasse essa caixinha, iria abrir também!
Unknown disse…
Eu tambem nao ia me aguentar de curiosidade...
Muito bom, Zoraya querida!

Anônimo disse…
Nossa Zo, de arrepiar! Beijos
Aglae
Anônimo disse…
Nossa Zo, de arrepiar! Beijos
Aglae
Alexandre Durão disse…
Zoraya, querida. Texto de primeira. Tempo certinho, preparação corretíssima, arremate certeiro.
Outra coisa muito importante: fica na memória, pensamos sobre o texto, depois. Sinal que não é só bom, mas tem algo a mais.
Eu já disse que sou seu fã?
Beijos.
Zoraya disse…
Pessoal, vocês são muito doces. Mas, olhem só, nada de se deixarem levar pela curiosidade. Vai que na caixinha tem coisa pior?
aretuza disse…
Zoraya Allan Poe!!!
Anônimo disse…
Vc poderia ter sido redatora em The Twilight Zone!!!
Carla Dias disse…
Que medo!
Por favor, escreva o próximo episódio :)
Cecilia Radetic disse…
Aghata Zoraya - até eu me assustei!!
Erica disse…
Putz... para com isso... ai que meda..rs Volta a escrever aquelas engraçadinhas, que essas me deixam com medo rsrsrs
albir disse…
Muito bom, Zoraya. Adoro esses sustos!
Clarisse disse…
Já havia comentado no email, mas agora que me cadastrei aqui, não vou perder a oportunidade de dizer em público que adoro teus contos fantásticos, miga!

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