NOITE DE 6ª-FEIRA ESCURA >> Zoraya Cesar

Saíram do curso tarde, ela e sua timidez, pois o resto do pessoal correu para aproveitar a noite de 6ª-feira, tão curta para alguns, tão longa para outros.

Era um tormento voltar para casa sozinha, com medo de assaltos, da viagem longa, da noite escura, do lugar ermo em que era obrigada a saltar. Entrou no ônibus, cumprimentou o motorista e o trocador – um nem lhe respondeu, o outro deu-lhe um bocejo. Nely sentou-se, discreta, num dos vários bancos vazios, mantendo distância do casal esquecido em si mesmo; do garoto com fones de ouvido perdido no batidão; e do homem gordo, forte, de rosto bexiguento e olhos de porco que sorriu-lhe, mostrando dentes amarelados e tortos, causando-lhe arrepios.

Casal, garoto, Nely, homem, todos saltaram no ponto final, numa rua de postes quebrados e lâmpadas baças. O grupo seguiu junto, uma pequena manada silenciosa, em direção ao cruzamento. Nely estava se sentindo uma boba, seus temores infundados, o tal homem nem chegara perto dela. Esperando o sinal, algo chamou sua atenção: no chão, iluminado pelos faróis dos carros, um lindo, lindo mesmo, cravo vermelho, repolhudo, luzidio, brilhava ao lado de uma garrafa, um copo e um maço de cigarros. Que perigo, ela pensou, alguém pode pisar nesse vidro e se machucar. Mas o arranjo estava tão bonito, que ela resolveu não mexer em nada, apenas apreciou um pouco mais, distraída. Ao levantar os olhos, percebeu, assustada, que o pequeno grupo se dissolvera e ela ficara sozinha. Atravessou correndo para o outro lado, um caminho escuro de casas apagadas cercadas por quintais mal cuidados, alguns terrenos baldios, muros quebrados, postes de luz mortiça, é uma desgraça ser pobre, choramingou Nely, ao machucar o pé num dos inúmeros desníveis da calçada desbeiçada.

Amedrontada, como sempre, pela penumbra desértica, ela tentou acelerar seu passo manquitolante, mas o pé começou a latejar como agulhas na alma. Parou ao lado de uma jurema preta enorme, e deu uma olhada para trás, para ver se estava tudo bem.

Não estava.

A alguns metros dela, sorria o gordo homem do ônibus, a luz sombria amarelando ainda mais seus dentes grandes, o suor de seu rosto cintilando de maneira sinistra.

Não adiantava gritar, ninguém ia ouvir. E sua garganta, tão fechada que a sufocava, não emitia nem um som de alerta, medo, nada. Não conseguia correr. Não havia como resistir, ele era muito forte. Talvez pudesse implorar por sua vida, já que sua integridade... Começou a chorar, alguém me ajude, pelo amor de Deus, tremendo tanto que mal se agüentava em pé.

O homem agora caminhava em sua direção, rindo, falando obscenidades, desafivelando o cinto. Nely sentiu o bafo de cigarro velho com cachaça e desesperou-se. Seu coração batia tão violentamente descompassado que ela não conseguia mais respirar ou enxergar direito, o sangue explodindo em suas têmporas fazendo-a ver tudo embaçado e turvo. Melhor morrer que sentir esse monstro sebento e imundo no meu corpo, quero morrer, quero morrer, quero morrer...

De repente, o sujeito parou, indeciso. No espaço entre sua presa e ele aparecera uma figura morena, magra, elegantemente trajada com um impecável terno branco, um chapéu panamá, desses que voltaram à moda, e uma vistosa gravata vermelha, quase indecente de tão brilhosa. Essa roupa é coisa de fresco, grunhiu o cérebro atrás dos olhos de porco, só dar uns gritos e sopapos que o coisinha sai correndo. Deu mais um passo, e parou, novamente indeciso. A esguia criatura nem se mexera, limitando-se a tragar suavemente o cigarro que trazia à boca; a cinza incandesceu, iluminando a cena. 

A mente entorpecida pelo terror, Nely nada entendia. Quem era ele? O que estava fazendo ali? Por que não fugia? Ia acabar morrendo também.

A estranha figura bamboleou, manemolente, e, com dois ou três movimentos de perna tão rápidos quanto as asas de um beija-flor, derrubou os olhos de porco no chão, desmaiado, o nariz quebrado, o maxilar fraturado. Inerte.

Voltou-se ele, então, para Nely, os dentes brancos luzindo nas sombras, a chama do cigarro rubra e alaranjada. Ajoelhou-se aos seus pés, deu mais uma tragada suave, e soprou uma fumaça dançante e cheirosa em cima do tornozelo machucado, que parou imediatamente de doer. Feito isso, levantou, afastou-se alguns passos para trás, curvou-se para ela numa mesura antiga, com o chapéu na mão, à altura do coração, e seguiu caminho.

Chocada, Nely percebeu que, à medida em que ele andava, gingando, os postes da rua – onde antes só havia penumbra e medo - iam-se acendendo.

Nely tentou segui-lo, para fugir dali e agradecer ao estranho que salvara sua vida. Ao primeiro passo, seu pé tropeçou em algo macio. Um enorme e lindo, luzidio, petaloso cravo vermelho.
 

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Comentários

Mauro disse…
Caramba, Zo, estou sem palavras! Acho que essa é a sua crônica que eu mais gostei até agora! Incrível como vc tem talento!
Anônimo disse…
Ainda bem que li sua crônica de dia, se fosse de noite eu ia ficar meio bolado...
aretuza disse…
Vou já enviar para o povo da umbanda, vão adorar, é quase uma homenagem!!!
Pai AnonimAnquitolante disse…
Cruz Credo, pé-de-pato mangalô treis vez...
Alexandre Durão disse…
Oi, Zoraya. Estou de volta. Muito bom, o texto de hoje,principalmente, pelo modo como você retira a raiz do medo do sobrenatural e a coloca no real, invertendo a lógica tradicional. Bonito, gostei demais.
Beijos.
Anônimo disse…
Amei!!!quem dera aparecesse um assim para nós. Sucesso, beijos
Pat Rochinha disse…
hahahaha
Desfecho inesperado! Adorei!
MUITO boa! Eu acredito que estas coisas aconteçam.
Carla Dias disse…
Vou lhe devolver a questão: quando sai o romance? Adorei! Beijos.
Márcia Bessa disse…
Oi Zo,
Menina que conto fascinante !!! Adoro Zé Pilintra!! Quem dera vê-lo desse jeito.
Amei !!!
Beijos!❤💋

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