OS LIMITES DO ESTILO >> André Ferrer
No feriadão da
República, revi um clássico dos anos de 1990, a Trilogia das Cores do cineasta
polonês Krzysztof Kieślowski: Bleu (no Brasil: A liberdade é azul, 1993),
Blanc (A igualdade é branca, 1994) e Rouge (A fraternidade é vermelha, 1994).
Senti-me satisfeito por
dois motivos quando a maratona de quase quatro horas chegou ao fim. Primeiro: a
Trilogia das Cores não desbotou. Em plena crise que a União Europeia atravessa,
os argumentos da série ganham a força analítica e a ironia que só a passagem
dos anos pode dar ou tirar de uma obra de arte. Além disso, eu constatei como o
meu olhar andava contaminado naquele tempo, vinte anos atrás. A mudança, no
entanto, deixou-me feliz.
Em 1994, o que eu
esperava de uma trilogia literária ou cinematográfica? Reiteração, continuidade
e revelação. Eu simplesmente engrossava o rebanho de consumidores da indústria
hollywoodiana. Qualquer expectativa em relação a um filme europeu era
exatamente igual àquela que eu tivera diante de cada um dos inúmeros enlatados
norte-americanos da minha infância e adolescência. Portanto, não foi à toa que
os filmes de Kieślowski causaram-me
desconforto.
A especialidade dele
foram as trilogias. Na Polônia, antes de trabalhar na França, ele produziu
trilogias para a televisão. Ou seja, até chegar à primazia de Bleu, Blanc e Rouge, Kieślowski aprimorou a sua arte que, a
meu ver (felizmente, apesar dos anos que agora me separam dos 1990), explora os
limites do estilo.
A Trilogia das Cores
foi a última obra do cineasta, que faleceu em 1996. Nela, ocorre uma redução
extrema dos pontos de contato entre um episódio e outro. Acontece uma espécie
de negação da unidade ou luta desta para se manter ereta pelo menos na forma de
sonho ou ideal. Uma vontade boa que, persistente, continua a coser as histórias
da trilogia bem como as diferenças históricas dos povos europeus. Uma vontade,
em síntese, historicamente frustrada.
O que se espera de uma
trilogia literária ou cinematográfica normalmente pode ser resumido em três
palavras: reiteração, continuidade e revelação. Poucos artistas, escritores ou
cineastas, ousam construir uma série que subverta essa expectativa — a
expectativa do receptor enraizado no senso comum. A não ser, é claro, que a
série seja desmembrada ainda no roteiro (ou esboço) e cada parte produzida e lançada
como obra completa e independente. Neste caso, qualquer entrelaçamento é
analisado de maneira diferente daquela da trilogia. Pontos de contato, assim,
são interpretados como traços de estilo.
No caso específico da
Trilogia das Cores, há tenuidade extrema no entrelaçamento. O segundo filme, Blanc, dá um encontrão no primeiro, Bleu, logo no início (cena do tribunal).
Rouge, o último, esbarra no primeiro
e no segundo já bem no final (reportagem na televisão sobre o acidente de ferry no Canal da Mancha). E é só.
Temos, por assim dizer,
filmes independentes e que carregam o estilo de Kieślowski. O esforço para enxergar a unidade poderia ser então
adiado. A ideia de trilogia, provisoriamente suspensa. Desta forma, o
expectador entenderia melhor como e o quanto a unidade e a negação da unidade
atuam na construção do significado dessa grande obra cinematográfica.
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