ENCONTROS E DESPEDIDAS >> Sílvia Tibo

Recebi a visita de uma amiga que se encantou pelo meu cachorro. Prometi, então, que lhe daria um filhote, assim que o meu pimpolho conseguisse uma namorada. A amiga agradeceu, mas disse que, embora gostasse muito de animais, não pretendia criar um, por ter certeza de que ele partiria antes dela.

Compreendo o temor, que não é de todo infundado. Considerando que cada ano de existência de um cachorro corresponde a cerca de sete anos de vida de um ser humano, de fato, pela ordem natural das coisas, a probabilidade de que o bichinho se vá antes de seu dono é bem considerável.

Contudo, a despeito da razoabilidade do argumento, assim que minha amiga saiu, passei o resto da tarde pensando sobre a dificuldade que nós, humanos, temos de lidar com a temporariedade das coisas e de aceitar que a vida é mesmo feita de encontros e despedidas.

No ocidente, a morte é concebida como o fim da vida e talvez por isso ela nos cause tanto pavor e sofrimento. Imaginarmo-nos distantes definitivamente daqueles que amamos causa-nos dor e medo. Medo da saudade que será sentida. Medo da ausência que dificilmente será suprida. Medo do vazio que talvez jamais seja preenchido.

O apego que temos àqueles que nos cercam impede que enxerguemos a morte como mais uma etapa da vida, tal como o nascimento, a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Impede, ainda, que a tenhamos como um fenômeno positivo: a passagem para um plano diverso e quiçá melhor do que este em que agora nos encontramos.

O grande problema é que, imersos nesse mar de insegurança e medo, muitas vezes, por temermos a morte e o vazio que ela provoca, deixamos de saborear aquilo que nos é apresentado nas fases que a antecedem. Ainda que de forma inconsciente, por medo de perder, acabamos deixando de viver.

E não é mesmo fácil a tarefa de cultivar o desapego. Entregar, deixar partir, deixar fluir. Viver apenas o presente, desprendendo-se do passado e sem expectativas quanto ao futuro. Admitir e aceitar que não somos eternos. Ou, ao menos, que não estaremos perpetuamente por aqui.

Há pouco mais de três anos, decidi que compraria um cachorro. Não foi propriamente a solidão que me levou a seguir esse caminho. Afinal, embora eu já morasse há algum tempo sozinha, não vivia isolada, de forma alguma. Apesar de não vivermos todos na mesma cidade, sempre tive pais e irmãos muito presentes. Bons amigos também nunca faltaram, felizmente.

Mas o fato é que, por razões que eu mesma desconhecia, estava decidida a ter um cãozinho. Assim que iniciei a busca por ele, vieram os comentários sobre o fato de que viveria relativamente pouco. Sobre o quanto me apegaria a ele e sofreria depois com sua perda. E sobre o quanto não valia a pena tê-lo, por todos esses motivos.

À época, como eu disse, tinha pais e irmãos saudáveis e por isso não cogitava a possibilidade de perder qualquer deles.

Ignorando as opiniões em contrário, após algumas semanas de busca, eis que, num belo dia, voltei pra casa com uma bolinha de pelos a tiracolo. Dei-lhe o nome de “Tel”, porque ele era, de fato, um “pitel”. Tratei de comprar a ração de que precisava, levei-o ao veterinário para que tomasse as primeiras vacinas e providenciei uma cama macia e quentinha para que ele não passasse frio, já que o inverno havia acabado de chegar.

Como trabalhava em casa, acompanhei de perto os primeiros meses de crescimento do meu filhote e poucas vezes tive que deixá-lo só. Ele também não permitia que eu me sentisse sozinha um minuto que fosse. Acompanhava-me por todos os cômodos do apartamento, onde quer que eu estivesse. E parecia se alegrar e se satisfazer ao menor sinal de afago. Mostrava os dentes quando ganhava um petisco, como se estivesse sorrindo. Chorava baixinho quando queria dar um passeio. Chorava um pouco mais alto quando estava com fome. E se enroscava nos meus pés quando desejava um aconchego, à noite, enquanto assistíamos juntos a algum programa na televisão. Durante os passeios, cheirava tudo e parava a cada milímetro quadrado, o que eu aprendi a acompanhar com paciência e carinho.

Era ano de 2009 e, poucos meses após a chegada do Tel, descobrimos que minha mãe estava gravemente doente. O câncer que havia inicialmente se instalado no intestino delgado alastrara-se para órgãos vizinhos. Ela precisaria se submeter a uma cirurgia de grandes proporções, seguida de várias e dolorosas sessões de quimioterapia.

Os meses que se seguiram à notícia foram bem difíceis. Passei a cogitar a possibilidade de perder minha mãe em pouco tempo e isso me apavorava. Não me imaginava sem sua presença. Não sabia sequer se seria possível viver sem que ela estivesse por perto. 

Mas esse foi também um período de grande aprendizado. No momento em que a morte me pareceu inevitável (e até necessária, diante do sofrimento que a doença causava), deixei de enxergá-la como inimiga e malfeitora. Tive-a como companheira. Encarei-a como remédio para os males que haviam se instalado em quem eu tanto amava.

À medida que as dores aumentaram, fui me despindo daquele egoísmo inicial. O medo de perder minha mãe, da saudade que eu viria a sentir e do buraco que se abriria em minha vida tornou-se ínfimo diante do sofrimento por que ela passava. Não havia espaço para minhas angústias e inseguranças: o importante era que o sofrimento dela tivesse fim. A morte, então, antes tão temida, passou a ser desejada.  Como os remédios já não produziam mais qualquer efeito, somente ela, a morte, seria capaz de estancar as dores de minha mãe.

Após a passagem, a angústia e a insegurança deram lugar à aceitação e, em seguida, à gratidão. Gratidão por termos sido conduzidas a essa existência como mãe e filha. Gratidão pelo tempo em que a vida permitiu que estivéssemos juntas. Gratidão pelas palavras ditas, pelos abraços apertados, pelo carinho dispensado, pelo amor abertamente demonstrado.

A saudade? Existe sim. E é grande. Infinita, eu diria. Não tem diminuído com o passar do tempo, como alguns supõem e como eu mesma supunha. Ao contrário, tem se intensificado a cada dia. O buraco? Está aqui também, dentro de mim. E penso que jamais será preenchido.

Na verdade, todos os sentimentos que eu temia vieram à tona assim que minha mãe partiu e na gigantesca proporção que eu imaginara. A saudade, o buraco, a ausência. Tudo isso agora é parte da minha rotina. São sensações que existem e precisam ser encaradas diariamente. E que machucam muito, profundamente.

Mas, por pior que seja, sei que a dor que sinto é positiva, porque é resultado da saudade. E só se tem saudade daquilo que foi bom. As gargalhadas que demos, as músicas que cantarolamos, os segredos que trocamos, o amor que dedicamos uma à outra. Sem dúvida, prefiro o sofrimento de agora a não ter vivido nada disso.

Nos momentos em que esses acontecimentos me vêm à mente, imagino o quão desperdiçada teria sido a minha existência se, por medo de que minha mãe partisse antes de mim, eu não tivesse me apegado e me entregado tanto a ela. E me alegro, então, por tê-la amado em larga escala, por todo o período em que estivemos juntas. Sinto-me aliviada ao constatar que, mesmo após o diagnóstico da doença, o medo de perdê-la não me paralisou e, portanto, não impediu que eu desfrutasse intensamente (e alegremente) dos últimos momentos de sua vida.

O cãozinho? Esteve comigo durante todo esse processo. Abanando o rabinho, mostrando os dentes, pedindo colo. E está comigo, ainda hoje. Passou de Tel a Teo e, em seguida, a Teodoro. Não sei bem como nem por que, mas o fato é que o apelido acabou originando um nome, ao contrário do que normalmente acontece. De qualquer forma, o Teodoro continuou e continua sendo o meu “pitel”: companheiro e leal, em tempo integral. Os benefícios que ele me traz são infinitamente superiores ao alimento e aos carinhos que lhe ofereço diariamente, embora ele sequer tenha consciência disso. É, sem dúvida, um amor puro e despretensioso.

Não sei por quanto tempo ainda o terei por perto. Talvez ele parta antes de mim, confirmando as estatísticas. Mas pode ser, também, que resolva contrariar a ordem natural das coisas. O fato é que, em algum momento de nossas vidas, nos perderemos um do outro, exatamente como aconteceu entre minha mãe e eu.

Por certo, nossa convivência será relativamente curta e, por maior que seja, durará menos tempo do que eu gostaria. Jamais permitirei, contudo, que essa constatação me impeça de viver plenamente o tempo que nos resta. Afinal, nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, “o desperdício da vida está no amor que não damos, nas formas que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade”.

Comentários

Juraci disse…
Oi, filhinha.
Quanto orgulho tenho de você!
Li seu lindo texto "ENCONTROS E DESPEDIDAS".
Fiquei muito emocionado. É profundo, leve, suave, cheio de uma alegre tristeza pela saudade, carinhoso e, ao mesmo tempo, muito real.
É assim como você escreveu que devemos encarar a vida e também a perda de quem amamos. E não podemos deixar de amar, porque um dia haveremos de perder.
Mamy certamente adorou sentir de lá este seu sentimento tão natural e amoroso.

Bjin

Pai
Zoraya disse…
O que dizer, Silvia? Qualquer palavara será pequena diante das suas. Todos que já passamos por isso sabemos do que você está falando. E falando muito bem. Maravihoso
Unknown disse…
Ai, Silvia, que coisa mais linda. Poucas pessoas falam de um assunto tão pesado de um jeito tão leve e bonito. Obrigada!
Beijos
Karoline disse…
Oi Sil, seu texto é lindo e puramente verdadeiro.
De que valeria a vida se não fossem os encontros com o amor, com o carinho;
E não seria verdadeiro o sentimento da saudade se não fosse os desencontros.
Você é um exemplo para muitos.
Abraços Ká
Unknown disse…
Karolzinha!
É sempre uma alegria receber sua visita por aqui...
Beijo grande!
Unknown disse…
Suas palavras são perfeitas... Meu Deus, que dom saber se expressar assim; que dádiva ter vivido e ainda viver um amor intenso, sem limites... Parabéns... Suas palavras chegarão ao coração de muitas pessoas e ao coração de sua mãe...

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