SOBRE SEGREDOS >> Carla Dias >>

Lembra-se perfeitamente de quando lhe contaram o primeiro segredo. Foi um moleque lá da escola, dez e poucos anos, que adorava atazaná-la, porque isso lhe dava um prazer imenso. Então que ele contou a ela, jurando que enfiaria o dedo no olho esquerdo dela se a guria abrisse a boca, que fora ele o autor da brincadeira da semana, aquela que fez quase todos da escola ficarem mudos e com os olhos esbugalhados, como se esperassem uma dor imensa passar.

Durante semanas, diretores e professores investigaram para descobrir quem fora a pessoa que botara fogo na biblioteca da escola. Diferente das travessuras comuns aos estudantes, a direção deixou bem claro que aquela ação se tratava de um crime. E foi assim que ela estreou no mundo dos que guardam e têm segredos.

Como este que lhe inquieta a alma, vinte e poucos anos depois. Como lhe disse a amiga, trata-se de um segredo inofensivo se mantido em segredo. Ainda assim, ela não consegue mais observar a situação sem que a sua consciência aponte para o que agora ela sabe. E vem tentando de um tudo. Quando o pensamento se volta ao segredo, ela escuta música, assiste novela, lê livro, tenta ocupar a cabeça com outras questões. Mas se o pensamento não vai embora, ela pula na piscina e fica o máximo de tempo possível debaixo da água. 

Gosta de pensar o mundo assim, submersa, como se ele fosse um zepelim sob sua cabeça. Como se ela pertencesse a outro planeta. Lembra-se que era essa sua característica de solitária, de pessoa sem amigos ou interesses que levavam aos eventos coletivos que fez o menino prestar atenção nela. E foram anos recebendo bilhetes maldosos, de ele enfiando a caneta nos ouvidos dela e a humilhando sempre que tinha a oportunidade. Ainda assim, era ela a guardadora do segredo dele, aquele que ele temia tanto, porque se havia algo que o menino abominava era a ideia de se mudar para a cadeia.

Emerge e recupera o fôlego sendo repatriada a sua realidade. A casa pode estar vazia de pessoas, mas nunca de música. Há sempre sons passeando pelos cômodos, e quando precisa do silêncio, é por pura necessidade de contemplação interna.

A amiga lhe garantiu que manter o segredo era melhor para todos os envolvidos. Que apesar de parecer complicado, era muito simples: algumas pessoas não sabem lidar com determinadas situações, não suportariam saber sobre elas.

Hora do intervalo, ela estava sentada no pátio da escola, em um dos bancos de madeira, observando os outros alunos correndo e conversando, celebrando, intimamente, o último dia naquela escola, depois de tantos anos à mercê de seu algoz. Sentou-se ao lado dela, arfante, assustado, exigindo atenção que ela não estava a fim de oferecer. Quando sentiu a boca dele tocar-lhe a orelha, também pressentiu um novo segredo. Nos últimos anos, ela se tornara sua confidente, uma vítima da necessidade dele de ter quem o escutasse sem que fosse necessário mentir para manter o status de alguém para se temer. Essa proximidade a distanciou das outras pessoas, que não queriam se meter com ele. E a revelação daquele segredo, o último deles, mudou tudo para ela. É naquele momento que ela pensa ao refletir sobre o que a amiga disse a respeito de nem todos serem capazes de suportar a revelação de um segredo.

Adulta, ajeitou a vida como pode, aceitando as viradas que em nada tinham a ver com as suas escolhas. De uma forma melancólica, porém efetiva, ela aprendeu que melhor viver da maneira mais simples possível. Há obstáculos, sempre, mas ela consegue lidar com eles e continuar sua jornada.

A última palavra dele coincidiu com o sinal para voltarem para a sala de aula. Eles se encararam por um tempo que durou até que o pátio estivesse vazio e o inspetor os mandasse subir, que estava na hora de estudar. Ele foi para a sala de aula correndo, mas ela não. Ela caminhou lentamente, apesar da insistência do inspetor em saber por que ela não andava mais rápido, se ela estava se sentindo mal. Ela continuou em silêncio, e quando chegou à porta da sala, disse que não podia entrar.

Aprendeu, também, que sentimentos se confundem. Depois daquele dia na escola, decidiu que não iria para a faculdade. Seus pais ficaram loucos, mas não houve quem mudasse sua decisão. Começou a trabalhar de balconista em uma livraria do bairro, alguns anos depois se mudou para o primeiro apartamento, e aos poucos foi se fechando em um universo que evitava os segredos. Mas ainda assim, eles a alcançavam. Talvez porque ela saiba como escutar o que as pessoas têm a dizer. Talvez porque ela não saiba como não escutar o que as pessoas têm a dizer.

Em dias como este, em que a lembrança a invade e não há o que a cale, ela apenas vaga pela casa. É como se ele ainda estivesse ali, contando-lhe o segredo, e ela sentisse seu cheiro, escutasse sua respiração, sentisse no próprio corpo o nervosismo dele, engasgasse com as suas palavras. Porque é dolorido, de um jeito gritante, alguém que lhe fez sofrer durante anos e ainda se tornou a única pessoa a sua volta, lhe confidenciar - de forma tão apocalíptica, como se fosse a pior coisa que pudesse ter lhe acontecido - o amor que sente por você desde sempre. E em seguida alertar que se trata de um segredo que deve ser mantido, senão...

Debaixo da água, observando o céu ondulado. Apesar de insistir em sustentar para si a certeza de que o segredo dele é o que lhe pesa desde a revelação, bem lá no fundo, escondido entre a tristeza de ter sido amada com tanto desmazelo, tanta sofreguidão, ela sabe que o que realmente lhe pesa é o próprio segredo. São as palavras que ficaram mudas, mas ecoaram dentro dela, enquanto olhava para ele, antes que corresse para a sala: 

Eu também te amo.

Ergue os braços, volta à superfície. Volta ao mundo que não compartilha do seu segredo. É como se nada estivesse fora do lugar. É como se...

carladias.com

Comentários

Carla,
Que texto bonito, onde tudo vai se encaixando perfeitamente!
Parabéns mais uma vez, parabéns sempre e que isso não seja segredo :)
Bjs
albir disse…
Que beleza, Carla! De novo.
Carla Dias disse…

Marisa e Albir... Obrigada :)
E beijos!

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