É O QUE BASTA >> André Ferrer
Preocupada. Quase dezessete
horas e o marido ainda não aparecera com o Gouda
e o Cheddar. Logo mais, à noite,
teriam Queijos & Vinhos.
Longe dali, ele conferiu as
horas enquanto uma vendedora repetia a lista das qualidades do televisor de LCD e a comparava (tão animada quanto na
primeira vez) com o rol das qualidades do televisor de LED. Ambos os aparelhos de última geração, a despeito das
diferenças tecnológicas, podiam ser instalados na parede.
— Legal! Deixa espaço livre para
os meus livros na estante.
A vendedora quis morrer. Os
dedos enfiados nas covas dos olhos. Movimento, de fato, revelador. Gesto que, segundo
lhe ocorrera, deixava claro aquele padrão feminino em relação aos amigos do
trabalho, às roupas, à decoração, enfim, às coisas da vida a dois.
Então, ele se lembrou de que um
insípido rack, há tempos, reinava
absoluto no lugar da velha estante de mogno.
— Durante
a semana eu decido. Muito obrigado.
Enquanto
deixava a loja, voltou a pensar na esposa e, por esta razão, estava arrependido.
Afinal, a decisão tinha sido plena. Discutida e aprovada a dois.
Democraticamente.
A
mulher era esclarecida. Nível universitário. Tanto quanto ele, ela adorava os
livros. Tinha bom gosto. Na verdade, se optaram por uma decoração clean e, agora, tinham uma dispensa
cheia de quinquilharias, fora em comum acordo.
— É
necessário ser justo com ela.
Em casa,
a mulher cruzou a sala. Teriam Queijos & Vinhos naquela noite. Havia, pelo
menos, dois argentinos e três nacionais, de safras recentes, na adega, e um bom
sortimento de iguarias importadas de vários cantos do mundo, Pecorino, Emmental, Roquefort, Camembert, Provolone, Gorgonzola,
mas o gerente regional e a namorada gostavam mesmo de Gouda e Cheddar. O
marido, bastante atrasado, causava-lhe ansiedade.
Então,
ela chegou à escada. Escalou dois degraus para ter uma visão especial da sala. Repentinamente
atormentada, encarou a falta que o marido fazia e também a falta que ela
própria fazia naquele ambiente.
— Networking — disse. Os dedos metidos nas covas dos olhos. Queria
tirá-los dali num só golpe. Assim, não veria a própria despersonalização.
— Vergonha! — prosseguiu. Tudo
aquilo valia a pena? Por causa dos outros?! — A minha casa mais parece um
hospital!
Rapidamente, atravessou a casa e
se instalou diante de uma porta. A porta do quarto das quinquilharias. Mal
podia esperar. Assim que pudesse, colocaria a história deles no devido lugar. A
televisão que planejavam ter deixaria espaço livre na estante. Sobre a madeira
nobre, haveria lugar para os porta-retratos e os bibelôs que pertenceram à sua
mãe. Teria, o marido, que aceitar.
Às dezessete horas e quinze
minutos, ele atravessou o corredor lotado e entrou na loja que ficava no outro
lado do shopping. Apanhou os queijos
necessários, o Cheddar e o Gouda, e se aproximou da secção de
bebidas.
Logo mais, pela primeira vez, receberiam
o gerente regional e a namorada. Merece. A ocasião merece. Tinham bons vinhos
na adega high tech recém-adquirida,
mas aquele Banyuls Rouge 2008 valorizaria
a noite.
— Para que?
Súbito, a lembrança do gerente
regional e da namorada se transformou numa sensação conhecida. Sempre que
viajava com o pai, na infância, era exatamente aquilo que sentia quando
chegavam ao destino (invariavelmente, uma cidadezinha mineira ou goiana perdida
no meio do cerrado).
Enquanto dirigia, ele pensou naquelas
antigas aventuras e na provável reação da mulher. Quando conversassem, logo
mais, ele descobriria o quanto aquela idiotice de networking realmente significava para ela.
— Basta. É aqui que eu “apeio”.
É o meu destino. Antes que se perca a identidade, é necessário ter essa
percepção.
Toque do celular: you
must remember this, a kiss is just a kiss…
— Amor?
— Alô, querido, você já comprou
os queijos?
— Cheddar e Gouda. Como
você mandou. Não se preocupe, já estou no carro, a caminho de casa. Tudo bem?
Silêncio.
— Oi?! — ele disse ainda.
— Já está muito longe da loja?
— Acabei de sair. Por quê?
— Volte e traga catupiry e
frescal. Lembra-se daquela cachaça? Presente do teu pai; que ele trouxe de Juiz
de Fora? Então. Para hoje à noite, é o que basta.
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