A PRIMEIRA HORA DO DIA >> Kika Coutinho


6 horas da manhã. Levanto rápido. “Quem te viu e quem te vê, hein, neguinha?", digo para mim mesma diante do espelho. Sem despertador nem nada, parece outra pessoa, só falta agora comer salada, aí pronto, vou ser outra mesmo. O que não seria nada mau – continuo, enquanto me aproximo do espelho – com essas olheiras gigantes. Gente, quando foi que isso apareceu, e tem umas bolsas – eu examino, assustada, ai não, chega, vamos disfarçar isso e pronto. O que os olhos não veem o coração não sente, completo, besuntando o rosto de corretivo.

Tudo bem. Corro para pôr uma roupa, procuro aquele salto que não dói o pé, e os carrego na mão até a sala; ando na ponta do pé e abro devagar a porta do corredor. Se uma das meninas acorda agora, vai ser fatal. Já passa das 6:30 quando tento achar alguma coisa sem lactose na cozinha. Pão integral, ai, que fome. Abro o freezer e pego o leite da Olivia, aliás, o do meu peito, que tirei e congelei para conseguir sair mais cedo. Deixo em cima da pia para ir descongelando, pego a minha mochila, ih, esqueci de guardar o computador, onde está o crachá, quem foi que disse que esse salto não dói, corro pra achar o fone de ouvido, e, ainda na ponta do pé (já calçado), passo de novo pela porta do corredor. Dez para as sete, dou uma batidinha no quarto da empregada que, espero, já esteja vestida. “Nete?” pergunto. “Já estou saindo”, ela diz com voz rouca. Vou chamando o elevador quando ela aparece, pronta para o trabalho, e eu explico: "O leite está fora da geladeira, esquenta em banho maria, tá? Se tomar tudo, faz mais de fórmula, não tem jeito... Olha, à tarde, na hora do balé, pede ajuda pra Lidia. No almoço, põe as duas nas cadeirinhas ao mesmo tempo. Eu chego pro banho, sem falta. Quero chegar pro jantar, se não conseguir, de novo as duas nas cadeirinhas. Pode deixar a Sofia comer a sopa da Olivia, dá uma colherada pra cada uma. Se precisar muito, pode até por um DVD, tá? E faz uma água de ameixa pra Olivia, ela tem que fazer cocô hoje. Me avisa? Pode mandar por mensagem, mas me avisa." O elevador chega e escuto um choro. Meu coração se aperta, preciso ir. Entro e procuro o botão do 2S. Ainda tenho tempo de gritar: “Qualquer dúvida, me liga. Qualquer duvidazinha, não deixe de me ligar, tá?” No carro, vejo uma mensagem do meu marido, que, a essa altura, também está no trânsito: “Feliz Dia da Mulher, meu amor”. Ah, é mesmo, é hoje, né? E porque não nos dão uma merda, uma merdica de um feriado, ao invés dessa porcariada de rosa e outdoors, penso, já acelerando o carro.

Tiro o batom da bolsa, engulo seco, e viro o espelhinho para mim. Enquanto escorrego a tinta nos lábios, volto a notar as olheiras, essas bandidas. Nem vocês, nem vocês, suas inconvenientes, respeitam o dia de hoje! E nem meus peitos, digo, sentindo-os encherem. O que vou fazer com esse tanto de leite o dia todo? Toddy, claro, ou cappuccino, quem sabe, rio de mim mesma até constatar, diante de mim, a primeira grande fila de carros do dia. O transito está parado. PA-RA-DO.

Antes que eu possa chorar, gritar ou voltar pra casa, todas as opções incorretas, freio, respiro e olho em volta. Uma legião de mulheres, em carros, a pé ou nos pontos de ônibus, me fazem companhia. Numa manhã silenciosa de quarta, eu não estou sozinha. Não é privilégio meu as agruras e as doçuras da feminilidade nos dias de hoje. Quanta, quantas, não têm vidas parecidas, melhores e, claro, infinitamente piores do que a minha... Um viva para elas é quase que ridículo, mas o que não é?, pergunto para mim mesma, passando a terceira camada de corretivo...

 

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Comentários

Solom ;) disse…
Lembrando: isso é só a primeira hora do dia. rsrsrs. Muito bom o Texto, Kika.
Zoraya disse…
Sei que é humor negro da minha parte Kika, me desculpe, por favor. Mas eu estava com saudades das suas agruras materno-femininas. Nao se preoucupe não, nós, mulheres, somos sobreviventes. Hão de inventar um corretivo para as olheiras dessa nossa vida desairada... Beijos

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