DEUS, QUESTIONAMENTOS E BOLINHAS DE GUDE >> Carla Dias >>
Conversando com um amigo, lembrei-me de uma pessoa que conheci há muitos anos, quase trinta, para ser mais exata. Esse homem tinha um sorriso muito bonito, daqueles que antecipam uma bondade genuína, que se faz admirar.
Tal homem aparecia em casa, sábado ou outro, para falar sobre Deus e as suas crias. Eu costumava frequentar tais reuniões, principalmente porque já tinha me desligado da religião da infância, o catolicismo, por não acreditar que era pecado muito do que eles pregavam ser, como ler os livros sobre bruxaria e deuses gregos que andava lendo.
Nessas reuniões, eu aprendi a pensar. Devo a esse exercício o aguçamento da minha curiosidade sobre a religiosidade e a humanidade, porque, independente da religião daquele homem, ele conseguiu incutir em mim o desejo de mergulhar no tema, e a liberdade de compreendê-lo e questioná-lo sem me sentir uma contraventora da fé, mas apenas uma pessoa exercendo o direito de saber mais sobre muito do que a maioria pregava sem dar direito ao questionamento. E eu sou questionadora.
Questionar é essencial para se aprender, algo que compreendi em poucas, porém construtivas aulas de filosofia. Aliás, até pouco tempo, meu desejo em fazer faculdade, por gosto, era pelo curso de Letras. Agora, Letras anda concorrendo com Filosofia... E Cinema? Bom, faculdade à parte, pensar é bom, questionar essencial, e ser respeitoso com a crença do outro é justo.
Deus, para mim, quando era menina de tudo, era um cara mais descolado do que os meus primos bagunceiros, capaz de fazer chover nas tardes quentes, gerando alívio e perfume de terra molhada, e eu achava isso o maior barato. Com o tempo, embrenhando-me no labirinto da religiosidade, percebi que o Deus vai além de ser esse cara descolado.
Aquele menino brincando com bolinhas de gude, na rua de sua casa, enquanto seus pais trabalham fora. É pequeno demais, ainda assim, assume as funções adultas: cuida dos irmãos menores, até cozinha arroz e feijão para eles comerem. Essa criança, com tarefas que um adulto deveria cumprir, faz o que pode para manter tudo em ordem, e reza, ora, medita, acredita. Disse-me, certa vez, que quando adulto trabalharia muito para comprar cestas básicas para os pobres, porque “faltar comida é pecado, né?”. Né... Mas pecado de quem, menino? E a declaração chegou justamente no dia em que eu passava na casa dele para deixar uma cesta básica, porque faltar comida não é apenas pecado em busca de autor, mas também contradiz o direito de todo ser humano de viver.
Esse mesmo menino, apesar das dificuldades, costuma fazer planos para as outras pessoas. Não há como não admirar isso nele. Apesar de ser educado para acreditar no que prega a sua religião, e nada mais, a cada bolinha de gude rolando no chão de terra, a cada dia sem saber se haverá arroz e feijão para cozinhar para seus irmãos, torna-se uma pessoa capaz de compreender que a sua fé também é baseada no que pode fazer para melhorar o próprio universo, antes de querer melhorar o mundo. Que tudo bem desejar observar a vida com amplidão, de questionar, de se aprofundar no que parece tão denso que jamais lhe caberia o conhecimento.
Há Deus nas bolinhas de gude, sabe? Não posso pensar diferente... Assim como há Deus naquele homem que conheci há tantos anos, e na filosofia da faculdade e dos botecos, na capacidade de se escolher, com todo direito ao livre-arbítrio, o não ser subjugado.
Amém.
Imagem: © James Robertson (stock.xchng)
Comentários
Amemo-nos!
;o)
Josie
amém!
enio,
academia de letras, artes e música de ituiutaba.
(gostei de saber que voce tem um pezinho em minas)
Enio... Obrigada!
Sim, tenho parentes em Minas, meu pai é de Poços. E sou apaixonada por São Thomé das Letras. Queria conhecer mais desse estado, quero! Vou.