UM BLUE >> Leonardo Marona


Então a música feita de fuligem se instalou provisoriamente por dentro das redomas do cérebro, e ele num piscar de olhos, muitos olhos em volta e por entre as moitas de calças arriadas, não estava mais ali, diante de máquinas feitas para não serem percebidas e sim eficientes na sua eficácia, mas ele não era de repente mais uma dessas máquinas e podia ouvir cordas, chocalhos grudados aos pés em choque violento com uma poesia analfabeta, a seqüência pulsante de que se precisa para suportar as esporas nas costas, o cavalo que suava pelas narinas, o povo de boca aberta, os pescoços vermelhos tilintando sob o sol, e ele não era mais máquina olhando para máquina apenas, havia na atmosfera algo que parecia espremer as existências para um canto sem oxigênio, havia o óleo quente e o cheiro de galinha frita, alguma risada desafinada e a lembrança de que somos todos feios em essência, de que, incompletos, arquejamos e esperamos ansiosamente pelo fim alheio, de que somos feitos de poeira cósmica e por isso devemos nos abraçar, unir os corpos feito elemento químico, e não era mais possível agora odiar a feiúra, negar a natureza como presente trabalhoso, sons muito agudos marcavam a chegada dos desajustados, a milenar cavalaria barroca, os traços de pele curtida rechaçada pelo sol com náusea, o gêiser de mil bocas abaixo da terra como que se mexendo, prestes a mudar de novo o quadro, e ali estamos todos em roda, não há mais porque falar em nada, somos a junção da existência e precisamos fazer seguir a ventoinha ceifadora, cacete falar em dicotomias mitológicas: bom-mau, bonito-feio, deus-diabo, estamos aqui e queremos tudo que não for diagnosticável, queremos a morte desprovida de sintoma, o toque de caixa exige que se preste atenção ao ritmo, as notas são pés negros que pulam do tiro que obriga a dançar – e de onde vocês acham que veio o reggae? – os pés sobre a brasa, a música primitiva dos homens sincréticos, dos negros fugitivos, a música dos contrabandistas de vinho barato, daqueles que recolhem tocos de cigarro do chão e, sempre elegantes, tiram o chapéu a quem passa, antes de lhe roubar a carteira, porque somos todos um pouco pedintes, rasgos ainda em sangue sensíveis ao artifício, por isso a música veloz, o murmúrio macambúzio por tragédias ancestrais, somos a música de após o maremoto, somos apóstolos vestidos com macacões sujos de graxa, mas isso por agora não é mais problema, chegue mais perto, não ligue para o cheiro forte, quanto à música, não se assuste, ela se torna mesmo mais rápida, assim, de um suingue como o coração ainda vivo, pegando fogo de repente no meio do ar, mas não perca o ponto, bata forte o pé no chão porque é música da terra, encha o peito de ar e sorria, pois pode ser a última vez – e será.

Então resta vestir o capuz, acomodar a corda em torno à garganta ressecada, as mãos impotentes não fazem mais acordes, estão trincadas uma na outra e delas agora escorre a seiva extinta, a música então desacelera, a paisagem fica por um instante esfacelada, todos fazem o sinal da cruz, mas deus sabe que chega a hora de cada um, e todos pensam: “mais um dia e não chegou minha vez” – a música pára somente quando não passa de um corpo dependurado.

Comentários

Tô gostando de ver, Léo. Já está até colocando imagens. :) E a crônica... instigante e bem escrita como sempre.
Anônimo disse…
bela lembrança, neste feriado....
leonardo marona disse…
Edu, engatinhando saio do meu marasmo vitual. Já faz algumas semanas que não te peço ajuda, hein? Inegável evolução!

Joana, me dê alguma pista. E viva Grace Jones!

Leo.

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