A MORTE DE BORIS YELTSIN >> Leonardo Marona

A morte de Boris Yeltsin foi para o protagonista desta história, a quem chamarei de ele, não confundir portanto com Boris, cuja morte foi muito mais, como eu dizia, que a morte de um simpático bêbado incoerente. Mais coisa morreu com Boris naquele dia escuro, quando os mosquitos estavam mais sanguinários.

Ele não sabia de nada – e parecia fazer muito tempo que ele não sabia de nada. Mas não se sentia tão mal porque ainda podia sentir que estava perto das pessoas de alguma forma: elas não pareciam saber de nada também, embora falassem demais.



Ele estava no ônibus, passando pela Glória, indo para o trabalho. No geral, estava infeliz. Mas ainda um pouco atordoado por uma melancolia boa, fugaz, dessas que se tem ao ler Manuel Bandeira. Ao seu lado no ônibus havia algumas pessoas e todos juntos pareciam ter menos cor do que as coisas tinham, mesmo que as coisas não tivessem muita também. Era uma estranha sensação de entorpecimento das próprias cores. Ele coçava os olhos e olhava pela janela, como criança tardia.


Trabalhava para uma agência internacional de notícias e sua cabeça estava a prêmio. Isso pode parecer bastante pomposo, assim, quando se ouve pela primeira vez. Mas com pouco tempo você percebe como são tristes e sem graça as notícias do mundo. Mortes de todos os tipos, bizarrices, acertos entre hipócritas de bigodinho e ternos apertados – e esses nanicos de bigodinho dominam o mundo, revezando os papéis. Era basicamente isso, mais a parte esportiva, com jogos de críquete e golfe, ou algum idiota ucraniano atravessando a nado o Rio Amazonas. Com o tempo, era o tédio.


O lugar onde ficava a agência era também um grande mistério. No coração da Lapa, entre mendigos corroídos pela hanseníase e travestis de queixo quadrado, dentro de um convento onde também havia um curso para servidores públicos. Ali trabalham nosso fadado protagonista e mais algumas mulheres, até as duas da madrugada. Uma agência de notícias dentro de um convento. Durante algum tempo ele pensou que aquilo fosse algum acordo mafioso. Em pouco tempo não pensava mais nada.


Conforme o ônibus se aproximava da Lapa, todos podiam ver, e alguns até gritavam, travestis magros e altos balançando genitálias de meio metro sob as sombras de um parque abandonado, ironicamente chamado Praça Paris. A cena seria desoladora, mas ninguém olhava para lugar nenhum fora de si, onde tudo era um deserto cercado de lágrimas. Todos olhavam para algum lugar perdido, todos pareciam pensar: “onde tudo deu errado?” E assim seguiam, uns para casa, outros para o trabalho, todos para a morte afinal, mas sem saber de que tipo. Os travestis – e isso nunca lhe pareceu estranho – riam das carrancas enfezadas de cansaço e gritavam que eram um bando de idiotas. Eles gritavam como se soubessem a verdade melhor do que o resto, dentro do ônibus, indo e vindo, com suas desculpas e suas paixões sinceras.


Nosso herói não sabia de nada, como dito anteriormente, não sabia da sua condição universal de homem de todos os tempos, e estava se dando conta disso aos poucos, diluindo a idéia nos últimos dias, enquanto escrevia notas sobre cem mortos numa explosão na Somália, um vídeo pornô para pandas na China, eleições corruptas na Nigéria, Congresso apodrecido no Equador, Madonna posando para fotos com o novo filho malauiano. Como vocês podem ver, nada muito estimulante. Mas era bom poder dizer, quando alguém lhe perguntava, e todas as pessoas que falam sobre os próprios empregos são inconvenientes, que, sim senhor, havia um emprego, que ele não era um desocupado. Assim as pessoas se aliviavam e não incomodavam mais. Nunca entendeu isso muito bem, como todo o resto, mas parecia funcionar dessa forma. Assim tudo era feito, em todos os lugares. Falava-se com propriedade sobre o que não se conhecia, e sorria-se para não ser incomodado. Assim vivemos e colecionamos algumas histórias. Assim agradecemos todos ao deus errado.


Quando chegou no lugar, viu que Boris Yeltsin estava morto. Era preciso dar a morte de Boris Yeltsin como destaque, ele disse a sua editora, uma mulher de meia idade, cabelo acaju e um filho pequeno que ela às vezes trazia junto, e que adorava dizer palavrão.


- É claro – ele disse. - Podemos mostrar aquelas imagens ótimas do Yeltsin dançando com aquela banda de cossacos, caindo de bêbado no plenário, ou então ele fazendo o Bill Clinton morrer de rir, ou jogando uma menina no mar revolto, ou até aquela em que ele jogava tênis com uma roupa ridícula... Tem também ele beliscando a secretária. Boris Yeltsin foi uma grande figura!


- Não podemos mostrar um chefe de estado fazendo essas coisas – a editora lhe disse com desprezo.


- Mas foi só o que ele soube fazer direito – ingenuamente ele falou. – Além, é claro, de foder a Rússia para sempre.


No fim das contas falaram que Boris Yeltsin, o “estadista russo da abertura democrática”, havia morrido, e cobriram o texto com imagens do homem entrando e saindo de carros, com a cara amarrada, lendo discursos prontos, provavelmente de ressaca, apertando a mão de homens muito pequenos, poderosos, com bigodinhos eriçados e nomes difíceis. Que dominam o mundo.

Em todos os momentos, Boris parecia com a cabeça distante, pensando talvez em problemas de ereção ou no amor que havia se perdido numa vida de necessidades urgentes e incertas. Ele aparecia triste e de cara inchada, os olhos vagos, acenando para um navio que ia embora. Tudo me lembrava o que fazíamos diariamente. Acenávamos para navios que iam embora todos os dias. Inventávamos navios para acenarmos quando eles fossem embora.


Boris Yeltsin era um alcoólatra e, como a grande maioria dos alcoólatras, tinha o coração mole, poucas respostas, poucas perguntas, e muita incompreensão. E se Boris, com o grande número de erros cometidos, foi responsável pela morte de milhares de pessoas, talvez indiretamente milhões, ele fez isso por desleixo e não por maldade. Os assassinos frios são sempre sóbrios. O bêbado só é capaz de matar por amor: por falta de amor, por amar demais.


E foi com essa frieza, que hoje chamamos de “vida como ela é”, que, no dia de sua morte, pintaram suas bochechas de uma cor pastel, fizeram de Boris um símbolo da mentira que vivemos, enquanto Boris sofreu e bebeu e não soube o que fazer, mas também riu e dançou e jogou mulheres ao mar e fez o mundo rir e caiu do palanque e nos mostrou o patético do nosso teatro, com ternos e homens pequenos de bigodinho apertando as mãos, andando sobre o fogo protegidos por cláusulas assinadas em prostíbulos.


A editora e chefe do nosso pobre rapaz era uma mulher bem-cuidada, mas que parecia muito mal-amada. Por isso, dizia que conhecia “as coisas como elas são”. E, é claro, perto dela ele jamais tinha razão. Ela vivia lhe pedindo calma. Ele chegava, dizia “Boa noite”, ela dizia “Calma!”. Ela o criticava todo o tempo, como quase todas as mulheres faziam com ele quase o tempo todo, desde que ele começou a se relacionar com elas. Diziam que ele – aqui me refiro ao nosso protagonista - era um homem grosseiro, com maus hábitos, nervoso, preconceituoso, anti-social, insensível, que ele não sabia ouvir, que era boca-suja, pessimista, machista, artista démodé, intolerante, e boa parte das mulheres justifica tudo que há de injustificável com regras mitológicas ou projeções espíritas.


Por ele, sem problema, tudo bem. A chefia sabe o que diz. Mas com o tempo começou a se questionar: “Será que eu sou mesmo o demônio? Devo ser mesmo terrível, porque todas criticam sem parar. Não me deixam falar e dizem que eu falo demais. Não, elas devem estar certas”. E acabava convencido da falta de amor próprio. E voltava para casa desolado, parecido com qualquer brasileiro que volta para casa do trabalho.


Mas já em casa, refletindo e tomando um copo de uísque pela alma de Boris Yeltsin, pensou que, como havia se tornado, ou vinha se tornando com os anos, um homem tipicamente confuso e amargo, por ser ingênuo e medroso, acabava atraindo mulheres iradas, rancorosas, talvez por reconhecer nele o pior do que tinham em si próprias e negavam. Mulheres muitas vezes sem amor, capazes de falar durante horas sobre o amor. Portanto, mulheres sem amor desesperadas por amor, por saber qual é o amor que nunca bate a porta, mas é sempre anunciado com pompa e intimidade, assim como os homens pequenos de bigodinho, que entram para apertar as mãos e aplaudir o fim do mundo. Mulheres enfim dispostas a tudo para defender um amor falso, um amor falso capaz de transformar Boris Yeltsin num digno chefe de estado.


Então, antes de apagar a luz, nosso anti-herói ergueu seu copo de uísque no ar, uma brisa agradável passou e ele pensou, enquanto brindava por uma alma embriagada: “pobre Boris, pobres de nós, arautos do amor com as mãos vazias”.

Comentários

Bem legal, Léo! Lembrei dos cronistas cariocas do final do século XIX.
Unknown disse…
é verdade que o coração dele era de porco....?

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